#24 Quantas vidas cabem em uma vida?
a ideia do "E se?" é irresistível. ela nos convida a mergulhar em um oceano de realidades alternativas, onde é fácil se perder.
A newsletter Café sem Açúcar é compartilhada gratuitamente e enviada em todas às quintas-feiras. O intuito desse espaço é explorar o mundo por meio da escrita criativa, buscando nas entrelinhas o sentido das coisas.
Compartilho crônicas do cotidiano, reflexões sobre a vida; comento sobre filmes, séries e livros.

1.
Quantas vidas cabem em uma vida?
Quantas versões de nós foram descartadas?
Quantos encontros cabem numa vida?
Quantos “e se” podem existir?
As escolhas que tomamos na vida moldam nosso caráter e nos conduzem ao amadurecimento. Por isso é tão difícil fazê-las.
Escolher significa abrir mão de outras coisas.
Existem inúmeros caminhos para serem percorridos e precisamos escolher apenas um de cada vez. Se não der certo, a gente busca outro.
Às vezes somos lançados a caminhos que não queríamos traçar.
Morei em Manaus por uma década. Minha mãe se mudou para lá logo após o meu nascimento, enquanto meu pai já residia lá devido ao trabalho. Tive que ir embora naquela cidade contra minha vontade, afinal, não cabia a eu decidir, eu era uma criança, e meus pais decidiram voltar para minha terra natal, Porto Velho, após meu avô paterno falecer.
Até hoje me pergunto "quem eu teria sido se tivéssemos ficado?”
Partir me fez sofrer muito, eu nunca havia partido de um lugar, pelo menos não conscientemente. Deixei amigos, escola, um estilo de vida para trás. Levei comigo as memórias e os E se’s.
Permaneci em minha terra natal por 9 anos. Eu tinha 18 anos quando fui embora mais uma vez de um lugar, mas dessa vez, foi escolha minha partir. Doeu mais uma vez me despedir, às vezes ainda dói minha escolha, mas acredito que se eu tivesse ficado teria doído mais. O que não me impede de questionar “quem eu teria sido se tivesse ficado?”
Neste ano completo 8 anos morando em Florianópolis. Mas por algum motivo maior do que eu consigo compreender, irei partir. Não agora. Nem daqui a 1 ou 4 meses. Mas eu sei que irei partir, já estou planejando. São as nossas escolhas que nos moldam, e eu estou tentando me moldar de certa forma.
A arte imita a vida. É a partir do mundo real que é criado o mundo imaginário do cinema, por isso temos algumas boas histórias tanto no cinema como na TV de personagens que fizeram escolhas que lhe proporcionaram vários “E se?”
2.
Algumas das nossas escolhas nos levam para longe de pessoas amadas e queridas por nós. Ninguém está preparado para se despedir, mas permanecer pode ser pior.
Tenho uma predileção por filmes com finais felizes diferentes, não aqueles convencionais em que o casal fica juntos para sempre -também gosto dessas histórias-, mas aqueles finais que dão um nó na garganta, um aperto no peito de ver seus personagens partindo para outros caminhos, cujos caminhos os levam para longe um do outro.
São essas histórias que mais se aproximam de nós, porque, afinal, conhecemos o peso de uma decisão.
ALERTA DE SPOILER
A partir de agora irei falar sobre algumas dessas histórias em filmes e séries, e todos vão conter spoiler.
3.
La La Land é um ótimo exemplo. Sebastian é um pianista que quer abrir um clube de jazz tradicional. Mia é uma atendente de cafeteria e sonha em ser atriz. Após alguns encontros, mal entendidos e confidências, os dois se apaixonam profundamente, cantam, dançam e flutuam. No início como qualquer paixão, é tudo mágico.
Eles tentam fazer o relacionamento dar certo, enquanto cada um busca realizar seus próprios sonhos. O apoio mútuo faz toda a diferença aqui. Porém, em determinado momento dessa trajetória de fama e sucesso, o relacionamento começa a desmoronar, e é quando o casal olha um para o outro e decidem terminar. Acontece que o termino aqui não é cheio de raiva ou rancor. Na verdade, há muito amor, mas é aquele velho ditado, só o amor não é o suficiente.

O filme ainda traz uma perspectiva do que poderia ter sido a vida deles se tivessem ficado e cada um conquistado seus sonhos juntos, e essa é uma parte interessante do filme porque foi muito bem contada, tão bem contada que alguns espectadores (como eu) pensaram que aquilo de fato havia acontecido, que o final era aqueles. Depois só deu eu chorando no cinema vendo que os dois não ficaram juntos.
4.
Normal People é uma minissérie baseada em um livro da autora Sally Rooney. Os protagonistas Marianne e Connell se conhecem na escola, ambos possuem origens completamente diferentes, se conectam profundamente e vivenciam algumas idas e vindas. A série mostra questões relacionadas a condição social e econômica, como isso pode influenciar nas relações humanas. Também enfatiza muito a necessidade de nos comunicarmos de forma clara sobre nossos desejos, sentimentos e sonhos, porque a falta de diálogo e uma comunicação mal feita pode gerar um grande problema, até mesmo te impedindo de viver algo legal com alguém.
Imagina você desejar alguém profundamente, ter esse sentimento lá guardado por tantos anos e quando finalmente está vivendo isso com aquela pessoa, algo surge e você precisa tomar uma decisão que te levará para longe dessa pessoa. Temos o costume de dizer que a vida acontece, mas não é exatamente isso, na verdade, a gente acontece. Nós mudamos. Nós tomamos escolhas todos os dias que nos levam a caminhos diferentes. Nós decidimos grande parte das coisas que irão nos acontecer.
Em Normal People, Mariane e Connell se separam de novo, mas de uma forma diferente. Os dois se amam muito, mas entendem o desejo de cada um de buscar realização profissional.
Mais uma vez, as escolhas doem, mas às vezes ficar doeria mais.

Eu assisti essa minissérie umas 4 vezes e li o livro. Chorei em todas às vezes. É difícil ver uma história de amor em que ambos se amam e não ficam juntos. Nós tendemos a pensar que se há amor, deveriam permanecer juntos. Da mesma forma que pensamos que para algo terminar deveria haver raiva, traição, rancor e qualquer outra coisa ruim. Terminar quando ainda há amor, requer certa coragem.
5.
Em Adoráveis Mulheres, filme baseado no livro Mulherzinhas (Little Women), cuja história já havia sido adaptada nos cinemas, mas que retornou pelas mãos de Greta Gerwin, Laurie (interpretado pelo Timothée) se declara para Jo (Saoirse Ronan) e a pede em casamento. Esta, no entanto, o recusa “eu não consigo amar você como você quer”.
O filme chegou a ser indicado ao Oscar, e conta a história de uma casa recheada de mulheres sonhadoras, inteligentes e apaixonadas uma pelas outras.
Jo é a segunda mais velha e sonha em ser escritora, por tratar-se de um filme de época, há a questão de que mulheres não se sustentam sozinhas, elas casam com alguém com boa condição ou viram solteironas.
Ela ao negar o pedido do seu então amigo Laurie, enfatiza o fato de que acha que nunca irá se casar, porque não quer abrir mão da liberdade que tem. Laurie não concorda e ainda menciona que ela um dia irá se casar sim, vai achar um homem e vai amá-lo. Após alguns anos Jo sente um leve arrependimento pela escolha que fez ao abrir mão de Laurie, mas já era tarde, o que não significa que fosse tarde para o amor. Laurie tinha razão, ela encontrou um homem e o amou profundamente.

Existem várias possibilidades no “e se”.
E se ela tivesse aceitado se casar com ele? Como é uma história que se passa em uma época que casar era importante para uma mulher, mais importante ainda era casar com um homem com bens e dinheiro, ela optou pela sua carreira como escritora, que naquela época também não era fácil.
É interessante como nas três histórias mencionadas, a carreira surge como um elemento em comum. Embora o amor romântico e carreira profissional possam coexistir, em outras situações, um conflito pode surgir, isso porque ambos demandam atenção e dedicação.
6.
Past Lives é o filme mais recente desta lista de filmes dramáticos sem um final feliz do casal, juntos para sempre. Eu o considerei o melhor filme de 2023 (eu, o Scorsese e o Nolan), e ainda que não tenha nenhuma chance de levar o Oscar, ele é meu filme favorito entre os 10 indicados.
Nora e Hae Sung são dois amigos de infância inseparáveis. Ambos são apaixonados um pelo outro, mas tiveram que se separar porque Nora iria morar em outro país. Após 20 anos, os dois se reencontram na cidade de Nova York onde Celine mora, e relembram da infância, dos sentimentos e desejos guardados, das escolhas que tiveram ao longo do caminho, do amor e da saudade.
Há um carinho mutuo, apesar de que um aparenta sentir mais que o outro, o que acontece com frequência nos relacionamentos e no cinema. Neste filme podemos enxergar com maior clareza a essência da pergunta “Quantas vidas cabem em uma vida?”

H: Ver você de novo e estar aqui me faz ter pensamentos estranhos.
N: Que pensamentos?
H: E se eu tivesse vindo para Nova Iorque há doze anos? E se você nunca tivesse saído de Seul? Se você não tivesse indo embora daquele jeito e nós tivéssemos crescidos juntos, eu ainda a teria procurado? Teríamos namorado? Terminado? Teríamos casado? Teríamos tido filhos juntos? Pensamentos assim.
7.
Eu não poderia deixar de citar Antes do Amanhecer, meu queridinho também. Antes que eu soubesse dos outros dois filmes que continuam a história de Celine e Jesse, fiquei desolada com o final do primeiro.
Participei no mês de janeiro de um clube do cinema, o qual discutimos sobre a trilogia dos Antes. Foi ótimo ouvir a perspectiva de várias pessoas que estiveram no clube, além de descobrir algumas curiosidades do filme.
Imagina você estar sozinho em uma viagem e de repente conhecer alguém legal que se conecta com você de uma forma que você nunca havia vivenciado antes, e então topam passar o dia juntos, conversando, se conhecendo e se apaixonando lentamente. E então, chega ao fim, porque afinal você está de passagem e precisa se despedir daquela pessoa que te fez sentir coisas que você nunca havia sentido antes ou não sentia há muito tempo, sem saber se vai conseguir vê-lo novamente, sem saber se no futuro há espaço para vocês dois juntos. Eu tenho experiência nesse assunto, porque já vivi algo parecido, e o filme Antes do Amanhecer é isso.

Acredito que o filme ganhou tanta popularidade pelo fato de soar extremamente natural e real. Os diálogos são ótimos, sinceros e próximos da nossa realidade. Os atores são carismáticos e possuem uma ótima química. Inclusive eles participaram ativamente na elaboração do roteiro, para tornar ainda mais real e profundo a relação dos dois protagonistas.
A história é baseada em fatos reais, o diretor e roteirista Richard Linklater que ainda não era famoso, estava a caminho de Nova Iorque, quando passou um dia na Philadelphia e conheceu Amy Lehrhaupt, em uma loja de brinquedos. Eles marcaram um encontro e fizeram exatamente o que ocorreu no filme, andaram e conversam até o outro dia de manhã. De acordo com uma entrevista, o diretor pensava o tempo inteiro que aquilo poderia virar um filme, “um dia vou fazer um filme sobre isso”. O que coincidentemente passou pela minha cabeça também, mas neste meu caso, eu quero escrever um livro.
Diferente do que acontece no filme e semelhante a minha própria história, eles trocaram contato e tentaram continuar a comunicação, mas a distância e o tempo mudou a relação deles.
O diretor conta que fez o primeiro filme e teve esperanças de que ela ressurgisse em sua vida, mas não foi o que aconteceu. Ele fez o segundo filme baseado na sua ideia de como seria o reencontro dele com a Amy, ainda com a esperança de que ela visse e respondesse de alguma forma.
Anos mais tarde, ele descobriu por meio de uma carta escrita pelo amigo da Amy que ela havia falecido em um acidente de trânsito, então por isso ela nunca respondeu.
E se ela tivesse visto o filme, teria o procurado? Se eles tivessem se reencontrado, como teria sido o segundo e o terceiro filme? Teria existido uma continuação?
A morte me parece o pior dos interrompimentos.
8.
Tenho certeza que existem inúmeras outras histórias no cinema e na TV que retratam a ideia de “Quantas vidas cabem em uma vida?”. Assim como eu imagino que a sua vida tenha alguns “E se?” que podem já ter atrapalhado o seu sono.
A questão é que isso é inevitável. É completamente impossível fugir disso. Sempre existiram os “E se?”, cabe a nós pensarmos bem na hora de tomarmos uma decisão, e nos arriscarmos. Viver é um risco danado.
“Se você deixa algo para trás, você também ganha algo novo.”
✍🏻 CONSIDERAÇÕES
Café com Açúcar foi criado com intuito de explorar o mundo por meio da escrita criativa, buscando nas entrelinhas o sentido das coisas.
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😉 RECOMENDAÇÕES
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"A morte me parece o pior dos interrompimentos". Deve ser uma sensação brutal.
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