A vida não para nem por um segundo sequer. Não importa se você está em casa deprimido, não importa se você está no horário de expediente, se mais um bebê nasceu, ou mais uma notícia ruim foi dada a alguém, não importa o que você esteja fazendo, a vida está acontecendo. Em algum lugar, pessoas estão chorando, brigando, rindo, brincando, transando, beijando, se apaixonando, se despedindo, passando fome, fugindo, soluçando ou morrendo. Parece óbvio, mas nunca é.
A vida é um amontoado de verbos.
No sábado, dia 3 de fevereiro de 2024, vivi alguns destes verbos.
Eu estava celebrando o início de fevereiro, afinal, já é carnaval, e meu aniversário é daqui a alguns dias. Fevereiro sempre foi sinônimo de muita comemoração, os dois maiores eventos do ano -minha existência é um evento, pelo menos para mim e minha mãe-. Nesse sábado eu estava com uma amiga e um amigo em um bloco de carnaval daqui de Florianópolis, eu estava bebendo e pulando ao som de Minha pequena Eva. Fazia 30 graus. Estávamos todos suados e o local estava lotado, tantos corpos amontoados em um mesmo lugar, tão próximos e, ao mesmo tempo tão distantes. Estávamos felizes e bêbados. No final nos encaminhamos para a casa de uma amiga na tentativa de comer algo para amenizar o estrago de tanto álcool no corpo. A noite estava ótima e parecia continuar assim, até que recebi uma mensagem do meu amigo perguntando se eu estava em casa porque queria me ligar, mas eu não estava em casa, então ele não ligou. Após meia hora meu amigo não quis esperar que eu fosse para casa, porque poderia demorar, eu não estava com pressa, então ele me lança a bomba, a notícia que ninguém espera receber em nenhum momento nesta vida, muito menos em um dia de folia, meu amigo do ensino médio havia falecido em um acidente de trânsito. Não há dúvidas de que qualquer resquício de felicidade e álcool sumiu na hora, não havia mais o semblante de antes, era só lagrimas e mais lagrimas, e claro, negação. Entrei em tremenda negação, talvez eu ainda esteja em negação, porque para mim, é como se não fizesse sentido.
Meu amigo Madson tinha a mesma idade que a minha, formado em Direito, morava em Cuiabá há alguns anos, conversávamos pouco, mas sentíamos amor e carinho um pelo outro. Acho que nossa última comunicação foi quando ele comentou meu stores no Instagram sobre o filme As Branquelas “A versão dublada é perfeita, a dublagem salva demais”.
A morte não manda mensagem dizendo que está próxima, apesar de que há algumas pessoas que em razão de alguma doença só tem mais algum tempo de vida, que pode ser dias, meses ou anos. Mas ninguém acredita 100% nisso, algumas pessoas vivem mais do que haviam dito que viveriam.
Isso me fez lembrar de quando recebi a notícia da morte do meu amigo Nélio em 2016, que coincidentemente, faz parte do mesmo ciclo de amigos com o Madson -eramos todos amigos-. Eu estava dentro de um ônibus cheio de torcedores do time do Avaí, meu amigo de infância jogava no time do Paraná na época, e teria Avaí x Paraná naquele domingo. Eu ganhei um ingresso, e fui prestigiá-lo. Eu nunca havia ido a um estádio de futebol, era minha primeira vez, estava contente. No trajeto eu estava monitorando as informações que eram colocadas em um grupo do WhatsApp sobre o estado de saúde desse meu amigo Nélio, ele estava internado em razão de um câncer e estava piorando. Eu estava em pé no ônibus ouvindo alguma coisa no fone de ouvido, quando voltei novamente ao grupo e a notícia que ninguém queria receber, chegou. Seus órgãos pararam de funcionar. De certa forma foi um alívio para alguns, principalmente pro pai dele que estava cansado de ver o filho sofrer.
Essa foi minha primeira experiência sentindo a dor do luto.
Quando meu tio, o filho mais novo da minha avó materna, morreu, eu era criança e ele tinha a minha idade atual (25 anos). Dias antes eu havia andado com ele de moto, fomos em uma fazenda próxima e quando eu desci da moto e sai correndo escorreguei em um coco de vaca, foi horrível, ele começou a rir e eu a chorar. Depois ele me ajudou a levantar e a me limpar com uma mangueira. Tenho algumas lembranças do enterro, foi em um ginásio em Jaru, interior de Rondônia. Todos choravam. Perguntaram se eu queria ir até o caixão e eu me recusei. Nunca gostei de enterros, muito menos de caixão aberto. Não é o tipo de lembrança que eu quero ter da pessoa.
Me oferecem um remédio, talvez um calmante, mas eu estava calma, quieta, processando. Acho que eu nunca tinha ouvido ou falado sobre morte até aquele dia.
Já quando meu avô paterno morreu, eu ainda morava em Manaus e foi a primeira e única vez que vi meu pai chorar como um bebê. É difícil para uma criança perceber que nossos pais são como qualquer outra pessoa no mundo, choram. Meu avô era problemático, mas sempre que eu ia para Porto Velho para passar férias, ele me dava chocolate.
Toda vida deveria ser considerava chorável, afinal cada pessoa é inestimável. Escrevi sobre isso em um texto bem no início da minha conta no Substack: #6 Quais Vidas contam como vida? Já havia cogitado falar do luto, mas não imaginei falar do luto em estado de luto. Eu resolvi falar disso agora, na verdade, escrevi grande parte das coisas deste texto no dia seguinte, porque para mim a escrita é uma forma de aliviar tudo que sinto. Descarregar. Tirar para fora. Entender o que se passa. A gente tenta descrever a dor, mesmo sabendo que é indescritível. Só se sente.
Há 7 anos meu amigo Nélio morreu. A última vez que o vi, ele estava no hospital e não havia sido diagnosticado com câncer ainda e eu já tinha passagem comprada só de ida para Florianópolis. Em seguida eu fiz uma despedida de Porto Velho, e Madson esteve.
Sempre fui péssima com despedidas, eu fugia, às vezes ignorava. Quando fui embora de Manaus eu não quis me despedir, nem dar o último abraço, me recusei a atender o telefone do meu melhor amigo, eu sempre me recusei a me despedir, porque eu sempre me recusei a acreditar que não veria mais aquela pessoa.
No ensino médio eu andava muito com um grupo de meninos, Madson e Nélio faziam parte desse grupo. Todo final de aula meus amigos se despediam como se não houvesse amanhã. Eles se abraçavam, se beijavam, diziam eu te amo uns para os outros, algo raro de se ver entre homens, meninos na época. Eles faziam esse ritual todas às vezes que se viam e eu me recusava a fazer parte disso, eu dizia que não gostava de abraços, às vezes andava mais rápido na frente para passar longe de qualquer despedida, às vezes era difícil, meus amigos tentavam de tudo para me abraçar, perdi as contas de quantas vezes o Nélio tentava me abraçar no final da aula, algumas vezes eu cedia e ele ficava muito feliz. O Madson adorava abraçar, e sempre tentava enfrentar minha cara de brava e meu escudo gigante contra abraços, ninguém nunca desistiu de tentar.
Hoje encaro isso com muita angústia, tamanha estupidez. Eu me recusava a receber aquele amor. Um amor tão puro e genuíno, amor de amigo. Um tempo que não volta mais.
Às vezes a gente se despede com a sensação de que de fato não vai mais ver aquela pessoa.
O pai dos meus primos morreu de Covid em 2021, após contrair o vírus em uma viagem em família. Eu estava de férias em Porto Velho, passei o natal na casa dele com meus primos e meu pai. Passamos a noite conversando, fazendo planos para ele ir nos visitar em Floripa, ele adoraria nosso apartamento, a cidade e as praias. Antes que eles fossem viajar, fui até lá me despedir, lembro de ter dito “vim me despedir porque vocês vão viajar e eu vou embora em breve”, e lembro de ter ouvido “não precisa se despedir, a gente vai voltar antes que você vá embora.”
Ele foi o único que não voltou.
A morte não dá recado dizendo quando vem, ela apenas vem.
A vida não para nem mesmo no fim.
Tem sido um processo estranho, estou vivendo o luto em meio ao carnaval, um misto de tristeza e vontade de viver. Meu aniversário está próximo, me sinto tão viva, mas, ao mesmo tempo tão arrasada. Não consigo processar direito nenhuma dessas informações, tudo anda confuso demais, muita coisa para sentir de uma vez só e mal sei se dou conta.
A mortalidade humana é um dos presentes mais horríveis e extraordinários que existem. Saber que somos mortais é o que torna os dias tão únicos e especiais, ao mesmo tempo, há o medo de não estar aproveitando direito.
Finitude.

Há uma música que sempre me faz lembrar do Nélio e agora atribuirei a ida do Madson. Não há uma única vez sequer que eu não lembre dele ao ouvir isso.
E quando vejo o mar
Existe algo que diz
Que a vida continua e se entregar é uma bobagem
Já que você não está aqui
O que posso fazer
É cuidar de mim
Quero ser feliz ao menos
Lembra que o plano era ficarmos bemVento no Litoral - Legião Urbana
Quando eu estava prestes a agendar a publicação desse texto recebi a notícia de que o tio do meu pai havia morrido. Foram bons os tempos em que estivemos juntos na casa de praia em Lagoinha/CE, falei disso no primeiro texto do ano aqui.
✍🏻 CONSIDERAÇÕES
Café com Açúcar foi criado com intuito de explorar o mundo por meio da escrita criativa, buscando nas entrelinhas o sentido das coisas.
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Um abraço forte, querida. Gosto de acreditar que todas as pessoas que de alguma forma estiveram próximas a mim permanecem aqui comigo, tendo simplesmente ido embora, se afastado ou falecido. Ficamos todos juntos aqui dentro.
Viver com as perdas é uma das coisas mais difíceis da vida. Fernanda Montenegro disse uma vez: "Eu tenho pena de morrer". E, sim. Morrer é uma pena. Seja sobre pessoas queridas ou sobre nós mesmos.
Um abraço.