A newsletter Café sem Açúcar é compartilhada gratuitamente e enviada em todas às quintas-feiras. O intuito desse espaço é explorar o mundo por meio da escrita criativa, buscando nas entrelinhas o sentido das coisas.
Compartilho crônicas do cotidiano, reflexões sobre a vida a partir do meu olhar e minha experiência; comento sobre filmes, séries e livros.
Todo santo dia, alguém percorre o mesmo trajeto, seja para o trabalho, academia, terapia, escola ou faculdade. No meio desse caminho você provavelmente se esbarrar com as mesmas pessoas e os mesmos edifícios; há rostos que lhe são tão familiares que você se sente próximo, tanto quanto fosse um familiar ou amigo. Você provavelmente não sabe nada daquela pessoa, ou pode ser que você tenha ouvido outro dia uma conversa dele com outro desconhecido.
Talvez você se veja tentado a puxar assunto, saber como ele está, o que faz da vida, quais são seus sonhos e medos. Por que não? Vocês se veem todo santo dia, que até os trejeitos você já conhece.
No caminho para o meu trabalho, há uma escola. Na verdade, são duas, uma de frente para a outra. Alguns metros dali, havia um senhor que vendia morangos. Durante dois meses, ele desapareceu e isso me incomodou. A sensação de vazio e o medo de que algo ruim tivesse acontecido me acompanharam todo esse tempo.
Um dia, ao passar pela esquina onde ele costumava estar, vi um rapaz mais jovem em seu lugar. Alguém fez a pergunta que eu tanto queria fazer "O que aconteceu com o senhor dos morangos?" O rapaz respondeu "Ele ficou doente, mas já já volta." Ufa. Menos mal. Foi o que me ocorreu em pensamento, parecia que agora poderia seguir meu caminho em paz.
Já me aproximando as escolas, encontro uma mulher com suas duas filhas. Esse encontro ocorre duas vezes na semana, o qual é a quantidade de dias que vou ao trabalho presencial. As duas meninas são parecidas, mas tomei certo apresso pela menina que sempre vem andando atrás da mãe, ela tem síndrome de down. Tenho um primo com a mesma condição, então é natural para mim sentir afinidade por outras crianças com Down.
Não sei seu nome, muito menos sua idade, mas a conheço há dois anos. Nesse tempo inteiro a vi chorar, sorrir e brincar. Em algumas oportunidades pude vê-la passar com seu pai, seu avô, a avó, algumas coleguinhas. Claro que não tenho como ter certeza disso, apenas presumi quem fossem.
Tudo isso acontece em questão de segundos. Eu sempre sorrio quando a vejo, porque eu estou, de certo modo, acompanhando ela crescer. Penso que mundo restará para aquela pequena menina, que um dia se tornará mulher. Quais são seus sonhos? Qual sua brincadeira predileta? A curiosidade me traz certo conforto.
Nos segundos depois do nosso encontro rotineiro, avisto um amontoado de crianças e adolescentes, cheios de espinhas, sorrisos metálicos e uma mochila enorme nas costas. São tantos sonhos que devem existir e outros ainda irão se revelar com o tempo.
Quantas opiniões e certezas sobre as coisas eles já devem ter formado, e que vão por agua abaixo, porque tudo vai mudar e precisa mudar. A realidade é muito mais complexa do que aquelas cabecinhas cheias de TikTok.
Vejo um grupo de meninas nitidamente fofocando sobre o outro grupo de meninos. Será que uma delas gosta do outro cara do grupo? Quem namora quem? Sinto ânsia de saber mais e rio sozinha no trajeto pensando como é engraçado esse período da paquera, do desejo, dos descobrimentos sexuais. Tudo parece inocente, mas, no fundo, não é bem assim.
Aquela menininha com sua mãe e irmã, me faz pensar na versão mirim da Manu, que amava escola e não perdia uma aula sequer, ao ponto de ir à escola com conjuntivite, usado um óculos velho de sol para esconder o olho. Não deu muito certo, claro, e tive que estudar no pátio sozinha. Não faço a mínima ideia do motivo pelo qual minha mãe me mandou mesmo assim.
Vendo aquelas crianças arrastando suas mochilas de rodinha, me fizeram lembrar da minha mochila de rodinha da Barbie que tive aos 7 anos, e que costumava levar escondida nela algumas bonecas para levar para a escola. Um ano depois, uma moça bateu no prédio pedindo alguma doação para seus filhos e minha mãe doou essa mochila.
Muitos anos depois, essa criança, já adolescente, voltou a usar mochila de rodinha, em razão de um diagnóstico de escoliose. Para a sorte dela, outras adolescentes no colégio usavam pelo mesmo motivo, o que fez criar uma pequena comunidade de pessoas usuárias de mochila de rodinha com coluna no formato de S.
Gosto de observar essas criaturas com atenção e empatia. Não faz tanto tempo assim que eu era a adolescente usando aparelho móvel e depois o fixo nos dentes. Que sofria a cada semana com uma nova paixão e rejeição. Que odiava o cabelo porque era volumoso demais, e exagerava na chapinha e procedimentos químicos para alisar.
Assim como passei um bom período de tempo evitando ficar me olhando no espelho porque detestava meu nariz, que anos depois passou por um procedimento cirúrgico estético, o qual não me arrependo nadica.
Sofri bullying, mas também pratiquei com os outros. A famosa passiva agressiva, era uma maneira de me proteger e parecer forte diante dos outros, que por muitos anos funcionou mesmo, já ouvi relatos de pessoas que tinham medo de vir falar comigo pela minha cara séria, e meu jeito sincero de dizer a verdade da forma menos empática possível.
Eu jamais voltaria no tempo, mas sempre aconselho as criança ou adolescente a viverem suas fases e não desejarem a vida adulta. O universo colegial pode ser cruel mesmo, sejamos sinceros, nosso corpo é algo desconhecido ainda, nossa mente é algo em constante mudança. Nesse período buscamos acolhimento e aceitação.
Nem todos os pais sabem lidar bem com essa época, porque é um caos. Minha adolescência foi caótica, divorcio dos meus pais, mudança de Manaus para Porto Velho, primeiro namorado, descobrimentos e frustrações. Dúvidas sobre o que eu queria ser e fazer da vida. Caos.
Sinto falta das possibilidades. Não que tenham sido extintas, mas nessa época tudo parece possível, somos gigantes, nossos sonhos são intensos, o céu é o limite.
Viro a esquina, tento andar mais depressa mas o amontoado de jovens fechando a passagem da calçada me incomoda. Eles gostam de andar em bando, eu gostava de andar em bando.
Consigo desviar de alguns e apressar o passo, chego em outra esquina, espero o sinal abrir, reparo que a maioria daqueles adolescentes usam chinelo com meia, tento entender qual a nova moda do momento escolar, mas ainda não faz sentido para mim. Começo a tirar meu crachá do bolso, atravesso a rua e viro a direita para o prédio onde fica meu trabalho. Agora a nova crise e reflexão é em relação aos estagiários novos que ainda estão na faculdade ou os que recém se formaram. Me sinto em um pequeno limbo, prestes a completar três anos de formada e fazendo uma transição de carreira.
Entro no elevador, olho aqueles rostos comuns e lembro de outro dia, quando sai com minhas amigas para tomar sopa e uma garçonete veio até nossa mesa para perguntar quantos anos eu tinha. Ela se surpreendeu quando eu disse 26 - nossa eu jurava que você tinha 18 anos - disse ela com um sorrisinho. Sorri de volta, mas sinceramente, não fiquei nenhum pouco feliz com aquilo.
✍🏻 CONSIDERAÇÕES
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eu tenho esse hábito de reparar bastante nas pessoas ao redor e, por causa da rotina, acaba que muitas se repetem no trajeto. raramente interajo com elas, mas sempre fico imaginando a vida que têm, o que fazem, os motivos para estarem ali…
Que texto mais delicioso, 💜
E, entendo bem por não ter curtido o comentário da garçonete.