#4 Um dia me disseram que eu não era boa suficiente
cresci frustrada por não ser tão boa quanto meus colegas de classe, parecia que havia algo de errado comigo.
Eu participo de um grupo no WhatsApp formado por 5 mulheres com quem já trabalhei, e uma delas é mãe de dois meninos lindos. Certo dia, ela nos encaminhou uma foto do mais velho aprendendo a escrever em letra cursiva, disse que o menino havia achado difícil escrever o H e quase chorou por causa disso. Ela ainda acrescentou dizendo “a prof deles começou o ano falando que eles iriam desenhar as letras. É bem isso… é um desenho.”
Eu achei bem legal a ideia de ensinar as crianças que escrever era um desenho, porque de fato você está desenhando uma letra e que juntando vários desenhos de várias letras da pra formar uma palavra, uma frase, um texto… isso é lindo de pensar.
Quem dera tivesse sido assim comigo.
Esse momento me fez lembrar da minha trajetória como aprendiz, e infelizmente lembro mais dos momentos ruins do que dos bons. Lembro-me da alfabetização e do pavor que eu tinha com cadernos de caligrafia.
Quando eu era criança e estava começando a aprender a escrever, observei meus coleguinhas e percebi que eles já escreviam muito bem para a idade, todos tinham entre 5 a 6 anos de idade. Enquanto eles aprendiam muito em tão pouco tempo, eu ainda estava aprendendo a falar direito, eu tinha uma enorme dificuldade em falar “televisão” naquela época.
Da mesma forma que demorei para pegar jeito na escrita e falar direito, também demorei para aprender a tabuada, e se me perguntarem hoje, sinto em dizer, não sei de nada.
Quando se trata de lembranças da infância, minha memoria é ótima. Lembro de quase tudo, principalmente dos momentos mais traumáticos da minha vida, que aconteceram justamente quando eu estava conhecendo a vida. Certa vez, eu deveria ter 4 ou 5 anos de idade, não me recordo bem, mas eu era muito novinha, e havia uma professora, cujo rosto e nome não lembro também - nesse caso minha memoria não chega tão longe-, ela se sentou do meu lado e pediu para que eu fizesse alguma coisa, não lembro qual era atividade, mas lembro que eu não conseguia realizá-la, eu tentava mas sempre errava. A professora insistia que eu tentasse mais uma vez, mas dessa vez ela apertou a minha mão, nesse momento senti uma pressão gigantesca, como se naquele momento, se eu não acertasse, teria consequências. Me lembro de chorar copiosamente nesse momento, fiquei amedrontada, parecia que minha vida dependia daquilo, por mais que eu tentasse, eu continuava errando. Até hoje eu não lembro o desfecho, eu tive medo de que contassem para minha mãe, tive medo de ficar de castigo.
Enquanto escrevia isso, chorei novamente, pela minha criança que não recebeu a atenção que deveria ter recebido.
Quando eu estava mais grandinha, comecei a aprender tabuada, que foi uma tortura pra mim, nem reza brava me fazia decorar aqueles números. Nesse inicio de vida estudantil, subtrair e multiplicar eram tarefas difíceis demais, e a tabuada tradicional vai do 1 ao 9, algumas têm o 10 mas ele é “mais fácil”. É muita coisa para se exigir de uma criança, sem falar que nesse período você estuda outras matérias como história, geografia, ciências, português…. confesso que sempre amei as matérias de humanas, história me deixava deslumbrada, ciências então… eu amava, mas depois que colocaram cálculo nisso também ai ferrou.
Voltando para a história da tabuada, aquele período foi tão difícil quanto aprender a escrever, infelizmente recebi muita pressão em casa e até consequências físicas por causa disso. Não lembro de quem foi a ideia, mas cheguei a dormir com a tabuada de baixo do travesseiro com a intenção de aprender por osmose e por incrível que pareça, depois disso eu aprendi.
Naquela época eu estava mais interessada em estudar sobre a era dos dinossauros, toda a evolução do homo sapiens, pré-história, período neolítico, paleolítico, isso me fascinava. Nesse mesmo período, eu buscava saber mais sobre os planetas do sistema solar, queria estudar e aprender mais sobre os animais, mais precisamente os felinos, que são minha paixão. Eu admirava o guepardo, porque ele é um dos animais mais velozes do mundo, e eu queria ser veloz também.
Desde cedo sofri a pressão de que eu precisava ser boa em algo, e se possível, em tudo. Mesmo tão nova me diziam que eu não era boa o suficiente, que eu precisava me esforçar mais, que eu era preguiçosa, não tinha interesse em nada, sendo que na verdade eu tinha interesse sobre tudo.
A impressão que eu tinha era que todos evoluíam, menos eu. Em razão disso, desenvolvi inúmeras inseguranças com as quais convivo até hoje. Nunca me senti boa suficiente, o outro parecia mais atraente e interessante, as características de uma pessoa inteligente nunca era atribuídas a mim. Não lembro de já ter ficado em primeiro lugar, muito menos segundo ou terceiro em alguma coisa.
Eu não era nem mesmo a primeira opção das pessoas na hora de montar um grupo na sala, eu costumava ficar quieta sem olhar para ninguém ao meu redor para não parecer pedinte, eu apenas decidia fazer sozinha, era menos humilhante e passava a impressão que eu era séria e boa demais para eles, sendo que era o contrário.
Outra coisa que eu detestava era escrever com alguém do lado. Um vez no ensino médio o professor começou a ditar algumas informações sobre a matéria da aula para que escrevêssemos, e eu sentava nas primeiras cadeiras, na frente e bem no meio -culpa da miopia-, e enquanto ele ditava e eu escrevia, ele ficava do meu lado observando e acompanhando o raciocínio, nessa hora eu ficava apavorada, sempre fui péssima com gramática, apesar de gostar muito de português, e em determinado momento eu escrevi algo errado e ele me corrigiu, não de forma muito discreta, dava para todo mundo ouvir ele falando a maneira certa de escrever aquela palavra, a sala tinha mais de 80 alunos, e isso me deixou extremamente constrangida. Sempre questionei minha falta de inteligência quando se tratava do básico de português. Provavelmente você irá encontrar erros de português nesse texto rs.
Eu entendo que corrigir é importante para o desenvolvimento e o aprimoramento do outro, eu mesma já corrigi colegas, mas sempre busquei fazer isso no privado, só eu e a pessoa, usando as palavras mais acolhedoras e sempre praticando a empatia, porque eu sei o quanto é ruim ser corrigida por ter falhado, isso causa constrangimento, mas depois passa. Nós não somos perfeitos, não somos robôs, somos humanos e humanos erram o tempo todo, o problema é explicar isso para quem insiste que devemos ser impecáveis.
Em um determinado momento do ensino médio, busquei um neurologista, por causa dos meus esquecimentos, havia momentos em que minha mãe pedia para fazer algo e em segundos eu esquecia, da mesma maneira que eu esquecia várias coisas que meus amigos me diziam ou perguntavam. Realizei alguns exames, e em seguida o médico me diagnosticou com Déficit de Atenção, me receitou ritalina que começou com um comprimido por dia, até terminar em três por dia.
Com o tempo os remédios não surtiram mais efeito, senti raiva e tristeza, comecei a pesquisar mais sobre o diagnóstico, e a partir da leitura de um artigo, resolvi parar de tomar o remédio, tive medo de viver o resto da vida dependendo de remédio.
Queria ressaltar que eu era adolescente nessa época, e não havia tanto diálogo sobre o assunto, eu nem sabia o que era TDH e entendia muito pouco sobre ritalina. Eu só lembro de sentir que eu não fazia parte disso, que talvez o meu problema fosse outro. Quero ainda acrescentar que hoje em dia não sou contra tomar remédio para tratar qualquer diagnóstico como TDH, depressão, ansiedade…. na verdade sou contra desinformação e o manuseio desse remédio sem acompanhamento médico.
Sobrevivi ao restante do ensino médio sem remédio, recebi ajuda dos meus amigos ao longo dos semestres. Quase reprovei em química, mas meus amigos criaram uma força tarefa, os que sabiam mais se disponibilizavam a ir na escola em horário diferente das aulas normais, e davam aula de reforço para os que estavam com problemas. As matérias que mais tive dificuldade eram matemática, física e química, graças as aulas de reforço e minha dedicação em casa, consegui tirar mais de 8 na prova de química que valia 10, assim garanti minha aprovação naquela matéria que me tirava da mira da reprovação, era o último ano do ensino médio, ninguém quer reprovar na reta final.
Durante a faculdade de direito, minhas inseguranças ficaram ainda mais fortes. Mais uma vez a sensação de que todos eram melhores que eu, todos tiravam ótimas notas, gabaritavam, respondiam as perguntas feitas ao longo das aulas. Eu os observava com cuidado, tentando entender como eles conseguiam ser assim, cada qual vinha de alguma cidade diferente, de uma realidade diferente. Isso me fez pensar que eu sabia muito pouco da vida, mas eu tinha só 18 anos.
Nesse período me vi mais isolada ainda, tentando desde o começo realizar as atividades sozinha sem precisar incomodar ninguém, porque eu sabia que não dava para esperar muito de mim se eu fizesse parte do grupo ou dupla, eu já pensava assim antes mesmo de tentar, não desejava ser um peso morto.
Apesar de tudo isso, sempre gostei de perguntar quando eu não sabia, mas sempre tinha medo de como o outro iria lidar com os meus questionamentos, nem todo mundo age de forma amigável, como um professor deveria ser, acolhedor e paciente. As vezes me sentia mal quando tinha dúvida e queria perguntar para alguém sobre, as vozes da minha cabeça diziam “como assim você não sabe?” “o professor acabou de falar disso, não prestou atenção?”.
No começo do curso eles mencionaram o mérito acadêmico, e que a pessoa que desse o seu melhor, ganharia uma pós graduação. Eu nem sequer pensei em tentar isso, desisti assim que ele terminou de falar.
Depois de um tempo aprendi a ignorar certas situações na faculdade, claro que vez ou outra batia o desespero, mas com o tempo parei de achar que eu não era boa suficiente, ficava feliz em tirar uma nota não tão boa, mas que era o suficiente para passar na matéria.
Além disso, minha opinião sempre foi algo delicado para mim, eu tinha muitas opiniões sobre vários assuntos, mas sempre tinha medo de expor ela durante um debate seja na faculdade, seja em uma roda de amigos. Eu tinha medo de estar errada, e pior, tinha medo da correção.
É como se eu tivesse medo das consequências que surgiriam caso eu estivesse errada, como se sempre houvesse mesmo consequências. Eu tinha medo do constrangimento que isso poderia me causar, da vergonha por errar em público.
Sobrevivi a alfabetização, assim como todo o colegial e a faculdade, mas em compensação, ganhei muitas inseguranças no caminho.
Fiz terapia durante a faculdade, e um dos temas que mais abordei foi minha insegurança intelectual. Minha psicologa chegou a realizar um teste sobre atenção e concentração, para possível um diagnóstico, mas os resultados foram ótimos, ou seja, não havia nada de errado comigo seja no sentido fisíco ou químico. Isso me deixou um pouco decepcionada, porque na minha cabeça, receber um diagnóstico seria um alívio, eu poderia finalmente jogar a culpa em algo.
Não é fácil no primeiro momento entender que você não é a única que possui dificuldade. Os métodos tradicionais de aprendizagem não alcançam todas as pessoas, isso porque cada um é um ser único e diferente, cujas características permitem aprender apenas por meio dos sons, ou de imagens, ou na realização de exercícios, existem muitos métodos que nos conectam com o conhecimento.
As vezes focamos tanto nas coisas que não sabemos, que esquecemos dos outros milhares de assuntos que nós sabemos de cor e salteado. Sempre há alguém que é melhor em uma coisa do que na outra, e ta tudo certo.
Começamos ainda muito crianças a aprender sobre as coisas, tudo é tão novo e puro. Precisamos de pessoas que ensinem com empatia, paciência, com amor ao conhecimento e a vida. Aprender é algo tão lindo, mas infelimente, com base na minha experiência desde nova, minha memória só lembra dos momentos de dor, porque aquilo que eu buscava aprender, não era útil para o meu futuro.
Eu percebo que existe uma cobrança sobre os jovens excessiva que compromete a sua saúde mental. Novamente, é sempre bom lembrar que não somos robôs, e sim humanos.
A cena da professora apertando a minha mãe está muito viva na minha mente, a lembrança da minha criança chorando por não conseguir fazer o que lhe haviam pedido me doi até hoje. Resolvi abraçar minha criança, dizer a ela que não precisa saber de tudo, e ta tudo bem, você é boa suficiente.
Não acho que me curei por completo, estou em processo… tem dias que to bem, me sentindo imbatível, mas tem dias que me sinto uma derrotada. E ta tudo bem. Eu sei que sou boa suficiente, só preciso continuar repetindo.