A newsletter Café sem Açúcar é compartilhada gratuitamente e enviada em todas às quintas-feiras. O intuito desse espaço é explorar o mundo por meio da escrita criativa, buscando nas entrelinhas o sentido das coisas.
Compartilho crônicas do cotidiano, reflexões sobre a vida a partir do meu olhar e minha experiência; comento sobre filmes, séries e livros.
O mais recente lançamento da A24, "Guerra Civil", é uma obra dirigida e roteirizada por Alex Garland, conhecido por seus trabalhos em "Ex Machina" e "Aniquilação". Sua filmografia revela seu gosto por narrativas inovadoras, explorando questionamentos sobre os rumos da nossa sociedade e civilização.
A história se passa nos Estados Unidos, em uma situação que poderia ser um aviso para algo que pode acontecer no futuro. Diversos estados se rebelam contra o governo americano, o motivo? Confesso que não sei! O filme não se dá ao trabalho de contar. Com a guerra interna declarada e o surgimento de grupos como Forças Ocidentais e Aliança da Flórida, surgem dois jornalistas Joel e Lee interpretados por Kirsten Dunst (Lee) e Wagner Moura (Joel) que se empenham para cobrir o evento e contar a história. Kirsten é uma fotojornalista famosa, que serve de inspiração para outras pessoas que querem ser fotógrafos como a personagem interpretada pela atriz Cailee Spaeny.
Lee e Joel seguem rumo a DC, com intuito de conseguir entrevistar e fotografar o presidente antes que o matem.
As cenas são intensas, muita gritaria, militares por todo lado, armar pesadas, conflitos por todo lado, não há escuta, não há conversa, só empurra e empurra, vozes se alterando, é assim a guerra.
Estamos habituados a fotos que retratam as guerras e outros momentos sombrios da história da humanidade. Essas fotos são testemunhas da história e um recado para não desejarmos que isso ocorra novamente, ou pelo menos deveriam ser. Elas destacam a vulnerabilidade humana e revelam a triste realidade de como o valor de uma vida pode ser reduzida a nada em função de ideologias, líderes políticos e movimentos partidários.
A imagem é uma linguagem poderosa tanto quanto a falada ou escrita. Ela tem capacidade de transcender barreiras e conectar outros indivíduos com realidades distintas. Ela nos convida a questionar e observar nós mesmos, a humanidade, os líderes, ampliando nossa percepção para além do nosso m².
É interessante que, embora as narrativas possam nos mobilizar, as fotografias sejam necessárias como provas dos crimes de guerra.
Judith Butler
Lembrei do filme “Mil Vezes Boa Noite”, que conta a história de uma fotojornalista consagrada, que vive o dilema de escolher entre a profissão na qual lhe coloca sempre em perigo, e sua família, que precisa dela viva e saudável. Rebecca, interpretada pela atriz Juliette Binoche, atravessa territórios desérticos, enfrenta inúmeros perigos para alcançar seu objetivo, fotografar a miséria, a guerra, denunciar abusos e corrupções.
Em algum momento, provavelmente durante a adolescência, eu mesma questionei e ouvi outros questionarem: “Por que essas pessoas, ao invés de ficarem fotografando, não estão ajudando?”. O que é uma tolice. No filme "Guerra Civil", acompanhamos Lee captando imagens de situações terríveis de perto, mas eu não a questiono, acredito que ela esteja fazendo exatamente o que pode fazer de melhor naquele momento. Ela está usando seu trabalho, que é sua arte, para contar histórias, impactar outras gerações, tentar chamar a atenção de outras pessoas que poderiam por fim a guerra. Afinal, o que uma mulher sozinha e jornalista poderia fazer além de fotografar ou correr quem sabe de uma situação como essa?
No filme o personagem de Wagner Moura é viciado em adrenalina, acredito que jornalistas desse ramo, até certo ponto, viciam nessa rotina pesada e exaustiva. Como no filme, tanto Lee e Joel já estão habituados a situações como essa e agem sem grandes surpresas, ao contrário da personagem de Cailee Spaeny, que inicia seu projeto de se tornar fotojornalista em uma guerra sanguinária, horrorizada com tudo que vê.
Mas, ainda assim, mesmo com tantas memórias de outras guerras, uma hora a conta chega, e o colapso acontece, que é quando tanto Lee e Joel reagem de forma contrária ao habitual, explodem com o horror que se deparam, principalmente após a morte de amigos jornalistas bem diante de seus olhos.
Lembrei do livro “Quadros de Guerra” da autora Judith Butler, na qual ela menciona uma crítica que fazem as fotografias, como algo que ainda que traduza a verdade, ela não é coerente, não traz a narrativa por inteiro, “apenas impressões fragmentadas ou dissociadas da realidade”. O que Judith rebate logo em seguida: “Na verdade, para que a noção de uma ‘interpretação visual não se torne paradoxal, parece importante reconhecer que, ao enquadrar a realidade, a fotografia já determinou o que será levado em conta dentro do enquadramento - e esse ato de delimitação é sem dúvida interpretativo.”
No filme, as fotografias retratam ações sendo executadas por ambos os lados, cidadãos comuns, exercito, rebeldes etc. Como se o horror fosse a guerra no seu todo, e não apenas de um lado da história.
Mas também tem a figura do presidente como o centro de todo o conflito, pois dele emana a decisão de agir ou não. Essa situação me faz pensar sobre poder e subordinação. Algumas dessas pessoas em conflito, estão apenas cumprindo ordens, sem pensar muito a respeito no certo ou errado, o que me lembra livro de Hannah Arendt sobre o julgamento “Eichmann em Jerusalém”.
Agora sobre a qualidade, o filme é bom. Eu gostei. Mas senti falta de mais explicações sobre o motivo da guerra, e não peço explicações ala Christopher Nolan, mas o básico mesmo. Talvez o diretor tenha um proposito para isso, talvez ele tenha tentado trazer um tom neutro a batalha, sem escolher um lado.
Kirsten Dunst e Wagner Moura fazem uma ótima dupla, com a adição de Cailee Spaeny e Stephen Henderson. A personagem de Kirsten assusta em alguns momentos, mostrando uma quase falta de empatia com os acontecimentos, ela age com mais frieza e normalidade, enquanto Wagne também age como se não houvesse empatia, mas ele brinca mais.
Como em uma guerra que raramente há tempo para falar/conversar, o final é bastante simbólico.
O presidente sobre a mira de três militares prontos para matá-lo, Wagner pede alguns minutos para garantir uma exclusiva, perguntando quais seriam as últimas palavras dele, então o presidente faz um apelo por misericórdia, para não matá-lo, o que não é ouvido, afinal, na guerra ninguém ouve, só atira.
✍🏻 CONSIDERAÇÕES
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