#6 Quais Vidas contam como vida?
vidas perdidas não por consequências naturais da vida, mas perdidas pela naturalização da violência como política de extermínio das vidas indesejáveis.
“Nenhuma vida humana é menos importante do que outra, e a vida de cada pessoa é inestimável.”
Malala Yousafzai
Em 2020, me deparei com um artigo cujo título despertou-me curiosidade, “De quem são as vidas consideradas choráveis em nosso mundo público?”. O texto foi escrito pela autora, filósofa americana Judith Butler, o qual eu já havia tido contato ao ler um de seus livros, Problemas de gênero: Feminismo e subversão da identidade. Foi nesse mesmo ano que começou a pandemia do covid-19, momento em que estivemos expostos e vulneráveis, o qual vivenciamos muitos lutos.
Voltei a pensar nesse artigo após me deparar com vários posicionamentos nas redes sociais de várias pessoas, inclusive alguns com grande notoriedade pública, sobre a guerra entre Israel e Hamas. Haviam opiniões acerca de qual lado estava errado, quais tinham motivações verdadeiras para agirem de tal modo, basicamente estavam criando argumentos para justificar a morte de milhares de pessoas.
O artigo mencionado no primeiro parágrafo, foi escrito pela Judith para à revista El País, em sua passagem pela Espanha, sobre sua obra que até aquele momento não havia sido publicada, o qual instiga as pessoas a pensarem no luto no âmbito público. Adentrando mais no tema, a autora realizou mais alguns questionamentos profundos que provavelmente nunca tenhamos pensado antes.
“Em que circunstâncias é possível lamentar uma vida perdida? De quem são as vidas consideradas choráveis em nosso mundo público? Quais são essas vidas que, se perdidas, não serão consideradas em absoluto uma perda? É possível que algumas de nossas vidas sejam consideradas choráveis e outras não? Faço essas perguntas difíceis e perturbadoras porque eu, como vocês, me oponho à morte violenta; à morte por meio da violência humana; à morte resultante de ações humanas, institucionais ou políticas; à morte provocada por uma negligência sistêmica por parte dos estados ou por modos de governança internacionais.”
Quando choramos a perda de alguém isso significa que para nós, aquela vida perdida tinha valor e era reconhecida como uma vida digna de ser vivível. Sentimos a dor da perda porque sentimos amor, desejo, saudade do outro. Há uma frase que ficou extremamente famosa em 2021, dita em um episódio da série WandaVision da Disney, o qual um personagem diz “Mas o que é o luto, se não o amor que perdura?”.
A morte originada da violência causa mais comoção para determinados grupos sociais porque remete ao sentimento de injustiça, pois uma vida não foi só retirada, mas exterminada.
No questionamento levantado pela autora, sobre quais são as vidas consideráveis choráveis, a desigualdade social é um fator determinante, uma vez que “se uma vida pode ser destruída ou desaparecer sem deixar rastro ou consequências aparentes”, isso significa, na verdade, que essa vida nunca existiu para o mundo público, ela nunca nem sequer foi considerada como uma vida merecedora de tutela.
O luto e o sentimento de injustiça são conexos. Isso porque, ao lamentarmos uma vida que merecia ser vivida, estamos também dizendo que é injusto a perda dessa vida que merecia ter vivido mais. Quando há mobilização social em razão do luto, seja por uma vida ou várias vidas, essa mobilização significa, nas palavras de Judith, “uma oposição militante diante da injustiça”.
Para entendermos melhor a reflexão proposta pela autora sobre quais vidas são consideráveis choráveis, imprescindíveis e dignas de proteção, devemos observar o modo como a sociedade é organizada, como são tratados determinados gêneros, raças, cor, pessoas com condição econômica e acadêmicas diferente. Vejamos o genocídio dos povos originários, eles vêm sendo exterminados desde a colonização no Brasil, como se nada fossem. Suas terras são constantemente retiradas e reivindicadas por fazendeiros e garimpeiros, isso quando não é o próprio poder executivo e legislativo limitando o acesso às suas terras.
Para se ter uma ideia, de acordo com os dados fornecidos por meio do relatório Violência Contra os Povos Indígenas do Brasil, realizado pelo Conselho Indigenista Missionário (Cimi), foram cerca de 795 indígenas assassinados entre 2019 e 2022. O relatório ainda cita informações adquiridas por meio da Secretaria de Saúde Indígena (SESAI), no qual mais de 835 crianças indígenas morreram, na faixa 0 a 4 anos.
Outro exemplo de violência é o genocídio da população localizada nas periferias do Brasil. De acordo com matéria publicada no G1, cerca de 1.245 foram mortos em decorrência de ações policiais no Rio de Janeiro em 2020. Em 2023 nos deparamos com inúmeras manchetes de intervenções policiais que acabaram em chacina, grande maioria das vítimas dessas ações criminosas são pessoas pretas.
“Quem conta como humano? Quais Vidas contam como vida? E, finalmente, o que concede a uma vida ser passível de luto?”
Judith Butler em Vida precária: os poderes do luto e da violência.
Sabemos que durante a pandemia do covid-19 milhares de pessoas foram contaminadas, alguns conseguiram sobreviver, outros muitos infelizmente não. Há um grupo que sofreu tanto quanto, embora poucos tenham interesse em saber, que são as pessoas em reclusão nos estabelecimentos prisionais. Mais de meio milhão de pessoas encarceradas no mundo todo foram contaminadas pelo vírus, e cerca de 3.800 vidas foram perdidas em razão da doença, conforme dados oferecidos pelo Escritório das Nações Unidas sobre Drogas e Crime (UNODC). No Brasil foram mais de 450 óbitos, metade é referente às mortes de servidores do sistema. Infelizmente os dados referentes às mortes por covid-19 no sistema carcerário são imprecisos, há dúvidas acerca desses dados que talvez não tenham sido usados para contabilizar o número de mortes no Brasil no geral.
Muitas mortes no mundo, mais precisamente no Brasil, foram em decorrência da negligência e omissão do governo federal, justo quem deveria nos oferecer assistência. Durante a pandemia ficou ainda mais escancarada a vulnerabilidade dessas pessoas, uma vez que a maioria dos estabelecimentos são precários e não possuem infraestrutura. Além disso, são locais insalubres, sem material de higiene, remédios e atendimento médico.
No Brasil não há lei que permita prisão perpetua e nem pena de morte, a exceção está nos casos em que houver guerra. Ocorre que na prática, essas pessoas são condenadas ao esquecimento, sob negligência máxima, largados para morrer. São vidas que perderam o valor de vida em razão da política criminal e encarceradora.
No livro Vida Precária, Judith conta que nossos corpos são vulneráveis, e que eles não nos pertencem por completo, ainda que reivindiquemos a nossa integridade corporal e nossa autodeterminação, nossos corpos pertencem ao mundo público.
“O corpo implica mortalidade, vulnerabilidade, agência: a pele e a carne expõem ao olhar dos outros, mas também ao toque e a violência. Ainda que lutemos pelo direito aos nossos corpos, a si mesmos, eles não nos pertencem. Pertencem mais ao mundo público, em que, “meu corpo é e não é meu”.
Ela quer nos dizer que a violência está no outro, pois é ele quem decide agir de tal modo conosco. Ao sairmos de casa todos os dias, estamos vulneráveis, dependemos do outro porque é dele que virá o amor e a violência, e esta última é o modo mais terrível de expor a vulnerabilidade primária humana.
Encontra-se hierarquia até mesmo no luto, onde vidas são mais importantes que outras, algumas vidas são mais humanizadas. Logo, se um determinado grupo resolve reivindicar suas vidas, como Black Lives Matter (Vidas Negras Importam), e os movimentos pró palestina, esses grupos tornam-se relevantes não só nos países que originaram o movimento, mas também ao redor do mundo, e podem até mesmo desencadear uma guerra, assim entende Judith. A busca pelo reconhecimento de que suas vidas valem é vista como um ato de rebeldia.
A guerra é um dos maiores exemplos de como um poder soberano pode escolher quais vidas devem ser reivindicadas e outras exterminadas. O Estado usa o discurso do direito à autodefesa individual e coletivo, para proteger sua soberania, e nesse momento, toda e qualquer ação decorrente desse “direito a autodefesa” ganha a bênção do estado e, consequentemente, não há responsabilização.
Em que condições algumas vidas humanas deixam de se tornar elegíveis aos direitos humanos?
É notória a visibilidade que uma pessoa pode ter ao ser reconhecida em âmbito público como uma pessoa humana política, detentora de direitos e merecedora da vida. O Estado e suas instituições deveriam garantir segurança contra tudo que for contrário à dignidade da pessoa humana, todavia, é cada vez mais comum ter que se proteger deles.
Esse tema luto público e quais vidas são mais humanizadas que outras, me remete a peça teatral grega Antígona de Sófocles, uma vez que a irmã Antígona reivindica o direito de enterrar o irmão Polinice, morto em batalha contra seu outro irmão. O tio Creonte, que assumiu o trono após a morte dos sobrinhos, determinou que o corpo de Polinice não receberia as honrarias inerentes de um funeral, porque ele havia lutado contra a pátria, enquanto o outro irmão receberia todas as honrarias. Mesmo sob pena de morte, Antígona realiza o funeral do irmão sob a justificativa de que todo homem deve ter direito ao sepultamento, como um ritual de passagem e libertação da alma.
Judith defende na sua obra que os veículos de comunicação podem desumanizar uma vida de várias maneiras, e a maior delas é por meio do silêncio. Esse discurso sem palavras tem como intuito enfatizar que não existiam vidas, ou perdas. Como chorar por essas vidas perdidas, se elas nem mesmo existiam, não são relevantes? “a falha de reconhecimento é imposta por meio de uma identificação com aqueles que se identificam com os autores dessa violência.”.
Constantemente me deparo com esse questionamento, “De quem são as vidas consideradas choráveis em nosso mundo público?”, ao assistir ou ler alguma notícia de morte brutal, o que infelizmente acontece todos os dias e tem sido normalizado por algumas pessoas. Lembrei de um trecho do livro de Bell Hooks “Tudo sobre o amor”, o qual ela fala da existência em nosso mundo do culto à morte, influenciada principalmente pela mídia, uma vez que as mortes tornam-se um espetáculos diariamente televisionados, ela cita Thomas Merton que:
[…] Numa sociedade assim, muito pode ser dito oficialmente a respeito de valores humanos, mas quando há, na verdade, uma escolha entre os vivos e os mortos, entre homens e dinheiro, ou homens e poder, ou homens e bombas, a escolha sempre será pela morte, pois a morte é o fim e o objetivo da vida.
📖 DICAS PARA QUEM QUER APROFUNDAR NO ASSUNTO
📚 Judith Butler:
📚 Bell Hooks:
✍🏻 CONSIDERAÇÕES
Café com Açúcar foi criado com intuito de explorar o mundo por meio da escrita criativa, buscando nas entrelinhas o sentido das coisas.
Se inscreva para receber em primeira mão meus textos novos.
👀 LEIA TAMBÉM
#1 Teriam as pessoas perdido a capacidade de se conectar com outras pessoas?
#3 O que eu aprendi sobre amor, sonhos e amadurecimento com Frances Ha