#28 Leitura como extensão de si
eu sou feita dos livros que leio, das pessoas que conheço, dos filmes que assisto
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Compartilho crônicas do cotidiano, reflexões sobre a vida; comento sobre filmes, séries e livros.
Certa vez, quando eu era adolescente, passei o dia inteiro devorando um livro, fazendo pequenos intervalos para comer e ir ao banheiro. Eu estava comprometida em continuar aquela história, não necessariamente desesperava para finalizá-lo, mas desesperada para saber mais, ver o que o personagem faria. Quando o livro acabou, eu meio que acabei junto. Parecia que nada mais faria sentido daquele momento em diante. Eu havia me tornado órfã de livro, de história, de experiência. Naquele momento entrei em um período depressivo e angustiante. Demorei alguns dias para me restabelecer, depois comprei um livro novo e o ciclo que havia sido encerado, iniciou-se novamente. Do mesmo modo que começava embriagar-me daquilo, eu lamentava seu fim. Eu não lia, eu mergulhava, aquilo virava extensão de mim.
Minha versão adolescente acostumava se envolver profundamente em histórias e em seguida ser lançada a um poço quase sem fundo de tristeza e angustia. Eu incorporava os personagens, sentia o que eles sentiam, pensava o que eles pensavam. Eu realmente me envolvia de corpo e alma, e depois ficava extremamente melancólica, até iniciar um livro novo. Conversei com uma colega na época que sofria do mesmo mal. Ela mencionou que iria parar por um tempo porque aquilo estava a perturbando um pouco. Refleti um pouco sobre o assunto, e decidi dar um tempo também das leituras, não me parecia normal essa melancolia toda por causa de um livro. A leitura era inebriante para mim, até demais.
Passei um bom período sem ler literatura e me sentir menos triste a cada vez que eu terminava uma nova história.
Quando criança eu tinha um pouco de preguiça de ler livros de literatura, meu pai me deu dois livros do Harry Potter, que na época era a sensação do momento, mas diferente da maioria das crianças, não tive nenhum pingo de vontade de abri-los ou assistir aos filmes. O livro ficou guardado por anos, pegou mofo e só deus sabe onde foi parar. Meu divertimento era ler histórias em quadrinhos, tudo que era revista e livro sobre dinossauros e, enciclopédias.
Bendito seja o tempo das enciclopédias. Demorei anos para ter acesso a um computador e depois mais anos ainda a ter acesso à internet, os celulares não eram como os de hoje, eu ainda não ia à lan house, então o que me restava eram as enciclopédias. Eu lia aquilo como alguém que lê a bíblia. Era minha leitura sagrada. Todos os dias eu abria uma nova página e explorava um país novo, conhecia uma comida ou dança nova, lia sobre alguma guerra ou qualquer que fosse o assunto. Foi daí que surgiu meu desejo de ser aventureira. Queria viajar o mundo, conhecer todas as culturas possíveis, aprender uma língua nova. Para uma criança tudo se torna um pouco mais fascinante, então imagina ler sobre tantas coisas que existem em nosso mundo. Minhas páginas favoritas eram relacionadas a história e ciência, já quis ser cientista, só para descobrir algo ou criar algo. Eu amava ler sobre o céu, sobre os planetas, as estrelas, queria saber todas as teorias, entender como foi o período Jurássico. Eu consumia também as revistas da Recreio, que sempre traziam curiosidades sobre o mundo e alguma matéria relacionado a ciência.
Li recentemente no Instagram que os gibis são a porta de entrada para outras leituras, o que eu concordo, li muitas HQs da Turma da Mônica e dos Padrinhos Mágicos, mas considero as enciclopédias tão legais quanto.
Com o advento da internet, adeus enciclopédias, bem-vindo Google, por um tempo continuei pesquisando dinossauros e planetas, mas a rua me chamava e como alguém que passou boa parte da vida trancada em um apartamento, ter a possibilidade de brincar na rua era insano, e não dava para desperdiçar essa oportunidade.
Dizem que livros são válvulas de escape do mundo real, talvez na época fosse, não tenho certeza, eu gosto de pensar nos livros como extensão de mim, ou melhor, propulsores da minha experiência de vida. Foi através das leituras que construí boa parte da minha personalidade, dos meus valores, compreendi meus gostos e desejos. Identifiquei sonhos e metas de vida. As histórias são uma maneira de aprender com a experiência de outra pessoa sem precisar ter a experiência em si.
Inclusive, em um dos módulos do curso de roteiro que faço, fala sobre como de fato aprendemos por meio de uma história algo novo, como se aquilo tivesse acontecido conosco.
‘Neurocientistas italianos em Parma, Itália, liderados por Giacomo Rizzolatti, descobriram algo chamado de "neurônios-espelho". Eles observaram que as células nos cérebros dos macacos eram ativadas quando os macacos faziam movimentos, mas o que os pesquisadores descobriram, quase por acidente, foi que os mesmos neurônios foram ativados quando os macacos observaram os outros fazendo movimentos. Os cérebros dos macacos não sabiam a diferença entre fazer uma coisa e assistir a mesma coisa.’
Todas as histórias, ainda que aparentemente fictícias, são histórias verdadeiras.
Eu costumo ser uma citação ambulante. Sempre me lembro de alguma frase ou momento de algum livro, ou até mesmo de filme, ou série, e cito para os meus amigos e conhecidos em geral, e sempre soa como algo que vivenciei. Não que eu não tenha vivenciado, convenhamos, as histórias ficam tão impregnadas em nosso cérebro que se tornam nossas de alguma maneira. Uma história deixa de ser do autor quando é lançada ao mundo, e o outro que a recebe tem a liberdade de interpreta-lá e aprofunda-lá ainda mais.
O que eu penso sobre o amor boa parte veio de Bell Hooks, e claro de outros inúmeros livros e filmes. Pensei muito sobre religião e mitos ao ler A cabana e Duna, sim, são bem diferentes, mas nem tanto, dependendo de quem lê, os dois podem ser ficção.
Boa parte das minhas reflexões sobre vida, relacionamentos, autoconhecimento, vem do livro Comer, Rezar e Amar. Eu sinto que já conheço a Itália só de ler o livro da Elizabeth.
Há o Pequeno Príncipe… bendita seja Carla Madeira, Jane Austen, Sally Rooney. São tantas histórias, autores, tantos personagens, experiências, lugares e sentimentos para serem explorados. Há tanto para ler, há tanto para escrever.
Espero um dia escrever um livro que faça alguém viver minha história como se sua fosse, mas espero que não entre em depressão.
✍🏻 CONSIDERAÇÕES
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😉 RECOMENDAÇÕES
Leia
O avesso da pele - Jeferson Tenório
Persuasão - Jane Austen
Pessoas Normais - Sally Rooney
Iracema - José de Alencar
👀 LEIA TAMBÉM
Manu você sem querer desbloqueou várias memórias de quando eu era mais nova: os gibis, as enciclopédias, a melancolia pós terminar alguns livros. Muito obrigada por essa leitura leve me fazer companhia numa manhã de domingo <3
Amei a reflexão que você trouxe hoje e me reconheci em vários trechos.