#7 O que o cinema te ensinou?
Alguns vão ao cinema pela diversão, outros pela expectativa de aprender algo. Todo filme tem alguma lição.
Para ler ao som de Harvest Moon de Neil Young
O cinema nos proporciona experiências extraordinárias, algumas delas ficam marcadas na memória, nos acompanham pelo resto da vida, criam histórias a partir de histórias, criam momentos canônicos no cinema como por exemplo a estreia de Vingadores: Infinity War e Endgame. Na época milhares de fãs do mundo inteiro foram aos cinemas, alguns fantasiados, outros em grupo grande de amigos, teve aplausos durantes as sessões, choro, grito de felicidade e espanto, todos unidos por uma só causa. Seja você ou não fã de super heróis, o que esses dois filmes fizeram nos cinemas vai ficar marcado pra sempre.
Às vezes o que fica marcado é aquele dia que você foi com seus pais, ou com seu/sua atual namorado(a), ou com um amigo que você não vê há tempos. Eu por exemplo tenho um imenso carinho pelo filme X-men: Apocalipse, porque no dia que eu fui ver esse filme, acabei esbarrando com um amigo do ensino médio no shopping que por coincidência também veria o mesmo filme, nos sentamos um do lado do outro, comentados sobre o filme no final e pegamos o mesmo ônibus para ir embora, essa é uma das memórias que eu tenho dele vivo e aparentemente saudável, antes de ser devorado por uma das doenças mais traiçoeiras, o câncer.
O cinema provoca sensações, emoções, inspirações e até mesmo indignações. Alguns muitos ões.
Você provavelmente já saiu de uma sessão de cinema transformado, se sentindo a pessoa mais incrível do mundo e pronto para ir em busca dos seus sonhos como Will Smitt em À procura da felicidade “Nunca deixe que alguém te diga que não pode fazer algo. Se você tem um sonho, tem que protegê-lo.”.
Alguns filmes nos fazem questionar o statu quo, nossos relacionamentos, nosso trabalho. Lembro da primeira vez que assisti ao filme Comer, rezar e amar - digo primeira vez porque depois revi esse filme inúmeras vezes -, alguns diálogos ficaram impregnados em mim, nessa época eu estava passando pelo processo de autoconhecimento, então o filme se tornou bastante inspirador para mim nessa fase, salvei alguns diálogos e passei a usá-los como mantra. Além disso, tenho um sonho antigo de viajar e conhecer o mundo e no filme a personagem da Júlia Roberts viaja para três países, que estão na minha lista de lugares que eu quero conhecer quando eu tiver dinheiro.
Filmes também podem compartilhar algum conhecimento histórico que não sabíamos até aquele momento, como por exemplo o filme de Kleber Mendonça Filho Retratos Fantasmas, o qual conta a história do centro da cidade de Recife a partir das salas de cinema daquela região, toda sua evolução e movimentação, os cinemas que iam e vinham. Em determinado momento do filme, é mencionado a presença de atividades nazistas na cidade, fato que pra mim era desconhecido e sai da sala de cinema encantada com tantas informações novas. Fui com mais três amigas e depois ficamos comentando sobre o filme, falamos o quão incrível foi saber sobre aquelas coisas. Cinema tem disso.
Li recentemente o livro Cinema Vivido: raça classe e sexo nas telas, da maravilhosa Bell hooks que é amante e critica do cinema. Ela conta que vai ao cinema em busca de aprender coisas, enquanto a grande maioria vai à procura de diversão. Talvez você, assim como eu, já tenha dito que gosta de filmes “que mostrem a realidade”, que o roteiro trata sobre “o mundo como ele é”, fui surpreendida com afirmação de que o cinema não reproduz a nossa realidade. Concordei com essa afirmação depois da leitura de mais algumas páginas, eu lembrei que já havia dito algumas vezes que o cinema precisa de liberdade poética para criar e reimaginar coisas, justamente para sairmos da nossa realidade e sonhar com um mundo novo cheio de possibilidades, até porque, quando nos deparamos com a cena de Ryan Gosling e Emma Stone voando e dançando no filme La La Land, sabemos que aquilo definitivamente não é a reprodução da realidade, mas pode ser uma metáfora ao amor e como nos sentimos quando estamos apaixonados, aquela euforia e leveza, os pés longe do chão.
O cinema produz magia. Modifica as coisas. Pega a realidade e a transforma em algo diferente bem diante dos nossos olhos. O cinema oferece uma versão reimaginada, reinventada da realidade. Pode parecer familiar, mas, na verdade, é um universo à parte do mundo real. É isso que torna os filmes tão atraentes.
Bell Hooks em Cinema Vivido: raça classe e sexo nas telas.
Algumas pessoas aprendem melhor sobre determinado assunto por meio de um filme ou série e é cada vez mais recorrente o uso do cinema como instrumento pedagógico. Eu por exemplo vi O Menino do Pijama Listrado na escola para entender melhor como foi o período nazista. Na faculdade assistimos o filme A caça para falarmos sobre memória de curto e longo prazo para a matéria de psicologia jurídica, assistimos também ao filme Uma prova de amor na aula de direito civil. Por fim, assisti na aula de criminologia o clássico do cinema Laranja Mecânica - que diferente da maioria, detestei-.
Então sim, o cinema tem valor pedagógico, Bell Hooks cita: “Mesmo que um cineasta não tenha a intenção de ensinar algo pro público, não significa que não haja ali uma lição a ser aprendida.". Ocorre que, essa imitação da vida pode se tornar perigosa, porque digo isso, porque o cinema influência, ele tem poder sobre nós, o modo como uma história é contada, a escolha do elenco, o personagem, a maneira como executam todos os elementos do filme pode gerar a perpetuação de certos estigmas. Por exemplo, existem vários filmes com personagens pretos que reproduzem estereótipos negativos, “ah mas só tá reproduzindo a realidade”, será mesmo uma reprodução ou o que está ocorrendo é a manutenção de pensamentos conservadores racistas e estereotipados da população negra?
O cinema produz discursos! Aquelas frases ficam marcadas na nossa memória e internalizadas como mantra são o resultado de um discurso produzido no filme/série. É possível produzir e reproduzir discursos sobre raça, sexo e classe, alguns permanecessem com discursos conservadores e outros recriam passando a impressão de que são progressistas. Eu já assisti alguns filmes no qual o roteiro escolhia uma abordagem que distorcia a realidade de determinado tema de uma maneira bastante problematica, podendo causar confusão mental para aqueles que assistem, senti isso vendo A baleia.
Ah mas, “Cinema é entretenimento”. Sim, e é mesmo. Mas também é política, cultura e educação. Provavelmente você não queira virar um crítico de cinema, porque acha que isso pode atrapalhar sua experiência cinematográfica, seu desejo de apenas de divertir ao ver um filme, o que antes era prazer, poderia se transformar em algo maçante. Então meus caros, digo por experiência própria que é possível ser crítica a um filme e se divertir com ele também, com exceção dos filmes que são ruins mesmo.
Quando o filme Barbie dirigido e escrito pela Greta Gerwig saiu nos cinemas, milhares de mulheres e meninas foram ao cinema vestidas de rosa, na mesma proporção que foram publicados inúmeras criticas e artigos sobre o poder desse filme e os debates que ele gera. Barbie se tornou a maior bilheteria de um filme dirigido por uma mulher nos Estados Unidos, além de compor a lista de filmes de maior bilheteria do ano de 2023. O roteiro é extremamente inteligente, engraçado e criativo, de fato ele aborda alguns aspectos da nossa sociedade, o modo como ela se organiza e se comporta. O filme reinventa a realidade, trazendo temas sobre feminismo e patriarcado.
Na barbielândia as mulheres governam, criam as leis, possuem poder aquisitivo, são proprietárias de suas casas e carros, elas são a maioria nas instituições de poder. Até que uma Barbie branca e loira passa por uma crise existencial e vai em busca da sua “dona” uma mulher adulta real que ainda ‘brinca’ de boneca. Eu me diverti muito assistindo esse filme, chorei e ri à beça, achei ele genial, mas eu sou uma amante e critica do cinema e entendi que aquele filme não diz tudo sobre o feminismo, e nem o representa por completo. Isso porque o filme não aborda o feminismo negro, o movimento LGBTQI+, até mesmo anticapitalismo que também é pauta no feminismo. O filme ri de si mesmo e lucra com isso, é um ótimo exemplo de storytelling e marketing da nostalgia, inclusive as ações da Mattel aumentaram muito depois do lançamento.
Eu sei que para alguns o filme foi uma “aula” sobre feminismo e como o patriarcado se manifesta de diferentes maneiras na nossa sociedade e sobre nós mulheres, mas ele não diz tudo e talvez nem devesse.
A lição que o filme transmite nem sempre foi criada para ser uma lição, o cinema ganha vida própria ao ser lançado ao mundo, nossas vivências e nosso acervo intelectual influenciam na nossa experiência cinematográfica, isso sem falar que o momento no qual estamos passando pode influenciar bastante, como por exemplo, indiquei Comer, Rezar e Amar para um amigo e ele não curtiu tanto quanto eu, porque ele já havia passado por coisas parecidas do filme e eu ainda quero passar por elas.
Para finalizar, imagine que alguém nunca tenha ouvido falar sobre determinado tema ou já tenha ouvido, mas não sabe muito a respeito e então ele assiste à um filme que fala sobre esse tema, aquilo é conhecimento novo para ele, está sendo produzido um discurso, um conceito da coisa, que ganha o nome de “verdade absoluta”, isso se a pessoa não se interessar sobre o assunto e buscar saber mais ou descobrir que aquilo que foi transmitido não é bem a verdade.
O cinema é multifacetado, possui inúmeras peculiaridades. O filme conta uma história mas somos nós que damos sentido a ele.
“Textos fortes trabalham nas bordas da nossa mente e alteram o que já existe. Isso não aconteceria se simplesmente refletissem aquilo que já existe.” Jeanette Winterson em Art Objects: Essays on Ecstasy and Effrontery “Objetos artisticos: ensaios sobre êxtase e afronta”
✍🏻 CONSIDERAÇÕES
Café com Açúcar foi criado com intuito de explorar o mundo por meio da escrita criativa, buscando nas entrelinhas o sentido das coisas.
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😉 RECOMENDAÇÕES
Assista Retratos Fantasmas e Comer, Rezar e Amar na Netflix.
Assista La La Land na Prime Vídeo
Leia Como falar sobre cinema: Um guia para apreciar a sétima arte
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