A newsletter Café sem Açúcar é gratuita e enviada todas às quintas-feiras. Neste espaço, registro e relato pequenos acontecimentos da vida cotidiana e os transformo em pequenas crônicas e reflexões, tentando buscar nas entrelinhas o sentido das coisas. Também compartilho textos sobre filmes e séries, trazendo análises, dicas e explicações.
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Lembro das primeiras aulas de roteiro que o professor falou as seguintes frases:
"cada história conta"
"todos contam história"
"tudo conta história”
Nós somos contadores natos, nascemos e morremos contando e ouvindo histórias. É assim que reivindicamos nosso espaço no mundo, e damos oportunidade para o outro ter espaço também.
Conhecer nossa história é uma maneira de entender a si mesmo, eu, por exemplo, depois dos 18 anos, mergulhei na minha história. Na história dos meus parentes, e me reconectei com meu passado e presente. Passei a ter orgulho da minha origem, dos meus traços, da minha fala.
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O cinema como memoria é uma maneira de expor histórias reais e trazê-las para a mesa de conversa. Uma maneira de não esquecermos, jamais.
Existem milhares de filmes que contam histórias traumatizantes de guerra. Histórias que contam e recontam o mesmo evento em perspectivas diferentes. Uma maneira de não esquecer e nos fazer lembrar porque não devemos pedir novamente que os antigos tempos voltem.
O cinema como memória é necessário quando lidamos com um mundo onde existem pessoas que negam a existência do período de ditadura militar, como também existem quem nega o holocausto. Sim, existem pessoas assim.
Ou ainda pior, que acreditam que era necessário e que tudo o que ocorreu foi "merecido”

No filme Ainda Estou Aqui, de Walter Salles (o mesmo diretor de Central do Brasil), o Brasil retratado vive sob a sombra da ditadura militar. A história acompanha a família Paiva, que mora no Rio de Janeiro, perto da praia, cercada por amigos e familiares. Eles têm uma vida confortável: Rubens, o pai, foi deputado e era engenheiro. Mas um dia, ele é levado por militares à paisana e nunca mais retorna.
Nossa vida é como uma história, com começo, meio e fim. Mas o que acontece quando nos roubam o direito ao fim? Quando não temos a chance de contar nossa própria história até o último capítulo? O ato de tirar a vida de alguém e fazer essa pessoa desaparecer é uma crueldade terrível para quem fica, deixando uma esperança dolorosa de que, talvez, um dia, essa pessoa volte.
É cruel, porque procuramos uma continuação para essa história. Independente do que vier, seja ruim ou bom, precisamos saber o que vem depois e, porque veio. Entao quando uma pessoa é levava e desaparece, é como se toda a vida daquela pessoa não tivesse sido vida. Uma maneira de apagamento cruel.
Há um texto que tem um tom de artigo, que escrevi bem no início da newsletter #6 Quais Vidas contam como vida?
Nesse texto menciono as obras e pensamentos da autora, filósofa americana Judith Butler, que tem uma vasta pesquisa falando sobre violência e luto, trazendo eventos emblemáticos do mundo, relacionados a guerra, etc., gosto desse trecho:
“Em que circunstâncias é possível lamentar uma vida perdida? De quem são as vidas consideradas choráveis em nosso mundo público? Quais são essas vidas que, se perdidas, não serão consideradas em absoluto uma perda? É possível que algumas de nossas vidas sejam consideradas choráveis e outras não? Faço essas perguntas difíceis e perturbadoras porque eu, como vocês, me oponho à morte violenta; à morte por meio da violência humana; à morte resultante de ações humanas, institucionais ou políticas; à morte provocada por uma negligência sistêmica por parte dos estados ou por modos de governança internacionais.”
No filme, ninguém diz explicitamente se ele morreu, e quando é mencionado, não há corpo, não há prova. A busca que antes era por encontrá-lo vivo transforma-se, aos poucos, em uma luta por reconhecimento: reconhecer que ele foi levado e torturado pelos militares. Não que encontrar o corpo tenha perdido importância, mas chega um momento em que o essencial é confirmar que ele existiu, que viveu, e que sua vida foi brutalmente interrompida.
Reivindicar sua memória, sua história e sua origem passa a ser um ato de resistência. Razão pela qual, Eunice, a esposa, lutou por mais de 25 anos pelo reconhecimento de que seu marido havia sido levado pelos militares, e morto, o qual merecia ter uma certidão de óbito.
E ela sorri segurando a certidão porque aquilo simboliza sua vida nesse plano na terra e sua morte violenta por um sistema cruel. Além disso, algumas pessoas precisam de rituais, como o ritual de enterrar alguém. Muitas enxergam o funeral como uma maneira de se despedir por completo de alguém.
Parafraseando mais um trecho do outro texto:
Esse tema luto público e quais vidas são mais humanizadas que outras, me remete a peça teatral grega Antígona de Sófocles, uma vez que a irmã Antígona reivindica o direito de enterrar o irmão Polinice, morto em batalha contra seu outro irmão. O tio Creonte, que assumiu o trono após a morte dos sobrinhos, determinou que o corpo de Polinice não receberia as honrarias inerentes de um funeral, porque ele havia lutado contra a pátria, enquanto o outro irmão receberia todas as honrarias. Mesmo sob pena de morte, Antígona realiza o funeral do irmão sob a justificativa de que todo homem deve ter direito ao sepultamento, como um ritual de passagem e libertação da alma.
Na comemoração da certidão de morte de Rubens Paiva, a irmã mais nova pergunta ao irmão mais novo em que momento ele enterrou o pai, já que não havia corpo, havia poucas informações a respeito, e o irmão responde que foi quando ele viu a mãe doando as roupas do pai, um ano e meio depois.
Já a irmã disse que foi antes, quando eles se mudaram do Rio de Janeiro para São Paulo, quando a casa que antes era sempre cheia de vida, estava completamente vazia.
Precisamos do fim, como uma maneira de dar sentido ao começo. Uma maneira de legitimar o que foi vivido. Se não nos dão esse fim, nós criamos o nosso, para seguirmos em frente.
Depois de muitos anos tivemos a criação da Comissão Nacional da Verdade em 2012, cujo objetivo era investigar violações de direitos humanos ocorridas entre 1946 e 1988, com foco nos anos de repressão militar.
O relatório final da Comissão, publicado em 2014, reconheceu formalmente esse período como uma ditadura e documentou casos de tortura, desaparecimentos e perseguições políticas. Também foi criada a Lei de Anistia e Comissão Especial de Mortos e Desaparecidos Políticos.
Em entrevista a CNN, Fernanda Torres comenta que “É um filme sobre memória”. “Cada país resolveu de uma maneira diferente [as ditaduras militares na América Latina]: a Argentina teve uma ditadura militar muito curta e muito mortífera que acabou com a Guerra das Malvinas, muito traumática, e isso facilitou que houvesse um julgamento e que as pessoas [responsáveis pelos crimes da Ditadura Militar argentina] fossem julgadas.”
Agora sobre o restante do filme. Adorei os elementos analógicos, o filtro e as cores usadas nesse filme, nos teletransportando para aquela época, aquele Brasil de 1970.
O uso de imagens e vídeos analógicos me remeteu ao filme Aftersun, aquela nostalgia que esse tipo de instrumento consegue transmitir.
Eu ouvi pessoas dizerem que o filme romantizou ou era muito feliz para uma época tão sombria, mas discordo. O filme é o retrato da vida acontecendo, como nos dias de hoje, com guerras no Oriente Médio e no Leste Europeu, aquecimento global, o retorno do autoritarismo e o conservadorismo como modinha, nós estamos tentando viver em meio ao caos, comprando coisas inúteis, assistindo a filmes, namorando, praticando atividade física, trabalhando em um emprego mediano, reclamando de coisas banais, sorrindo e chorando. É tão somente a vida seguindo sendo vida, e a gente tentando viver e sobreviver.
Como no filme em que a família está curtindo um dia de sol na praia, com sorrisos largos enquanto carros cheios de militares passam pelas ruas, assim fazemos todos os dias.
Neste filme Fernando Torres se consagra mais uma vez como atriz excepcional, o que é incrível pensar que é a mesma mulher de entre tapas e beijos. Ter esse poder de transitar em diferentes gêneros cinematográfico é para poucos, e ela faz muito bem.
Agora, sobre nossa incrível Fernanda Montenegro. Ela não fala uma palavra sequer. Não da para ouvir nem a respiração dela direito, mas entrega uma atuação impecável. Ela que é a versão mais velha de Eunice, com Alzheimer que de certa forma, é também, ainda que natural, uma maneira cruel de matar nossas histórias. Nossas memórias.
Um dos momentos que mais chorei foi com ela, a cena dela, lembrando.
✍🏻 CONSIDERAÇÕES
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Belo texto!
Maravilha de texto, Emanuella! Parabéns. Aliás, quando virás a Rondônia? A Temática Editora e a Letras Amazônicas quer te conhecer e, quem sabe, te ajudar a publicar um dia... :)