#42 Escrever me devolveu a memória
E agora a memória virou material para contar histórias
A newsletter Café sem Açúcar é compartilhada gratuitamente e enviada em todas às quintas-feiras. O intuito desse espaço é explorar o mundo por meio da escrita criativa, buscando nas entrelinhas o sentido das coisas.
Compartilho crônicas do cotidiano, reflexões sobre a vida a partir do meu olhar e minha experiência; comento sobre filmes, séries e livros.
“Escrever sobre si tem essa força, de poder recontar as memórias por uma perspectiva mais criativa, livre e gentil com quem escreve e lê.” - Luca Brandão.
Contei a minha mãe sobre algumas lembranças que eu guardava da nossa primeira viagem à Fortaleza. Ela ficou surpresa com tantas informações, algumas delas carregavam muitos detalhes, era difícil acreditar que eu lembrava de tantas coisas quando na época eu só tinha três anos.
Ela me disse “não lembro de quase mais nada da sua infância, minha memória está cada vez pior”
“minhas memórias nunca estiveram tão boas” falei na sequência.
Naquela época morávamos em Manaus e meu pai havia ganhado uma moto em um sorteio. Em vez de ficar com a moto, ele a vendeu e utilizou o dinheiro para pagar as passagens para Fortaleza, cidade onde ele nasceu. Eu nunca havia visto o mar, tampouco minha mãe.
Das minhas memórias daquela viagem, lembro de tomar sorvete na praia de Iracema - o nome da praia soube depois. O sorvete derretia com certa velocidade, não consegui dar conta de lamber o que caia. Meus dedos ficaram grudentos e doces. Lembro de tentar brincar na areia com meu típico kit de praia, uma pá e um balde. Ocorre que a textura da areia me incomodava e o vento que levava areia para os meus olhos também.
Eu queria me limpar e pedia para minha mãe ir comigo até o chuveiro que ficava na praia. O problema é que não dá para se desvencilhar da areia nem por um segundo. No instante em que fico limpa, preciso voltar para nossa mesa, e por estar molhada, a areia gruda ainda mais no pé, me deixando mais incomodada ainda.
Eu lembro da viagem com certo carinho, mas a experiência em si, para minha versão infantil, foi horrível. Eu não gostei do mar, muito menos da areia.
Em poucos momentos da minha vida, parei para pensar e escrever sobre essa viagem, até porque nunca tive motivos para ficar lembrando. Acontece que, desde que fundei a newsletter, precisei encontrar meu estilo de texto e possíveis temas para conseguir publicar com constância, e não menos importante, desenvolver minha escrita.
Então, nessa de fuçar o Pinterest, me deparei com uma lista de temas que eu poderia abordar em textos e fui separando o que fazia sentido para mim. Foi assim que nasceu o texto: Um dia me disseram que eu não era boa suficiente. Depois entendi que eu sou um repertório ambulante.
Revirei minhas memórias em busca de ideias e inspirações, e descobri um baú.
A busca por palavras a serem escritas, me conectou com experiências e sentimentos antigos, que hoje transformo em história, porque afinal, tudo é história, e todos têm história.
Minha memória a longo prazo é bem boa. Lembro de muita coisa de quando era criança e consigo, por meio de uma foto, recordar de sons e momentos. Já a de curto prazo tende a ser mais fraca, esqueço algo que pensei em fazer segundos atrás, mas lembro de uma colega chamada Madalena do jardim de infância.
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Escrever me devolveu a memória. Escrever a partir de mim e sobre mim me ajudou a destravar lugares, entender momentos e lembrar de pessoas. Capturo a essência e a reciclo, transformando a memória em história. A história vivida em história contada.
Descobri há alguns meses a autora Anne Ernaux, por meio do livro: A escrita como faca e outros textos. Neste livro, em formato de entrevista, é dito sobre sua escrita, seu entendimento sobre certas coisas e claro, suas obras. Anne usa seu repertório particular para escrever histórias impactantes, incluindo a que lhe rendeu o Nobel de Literatura de 2022.
Na contracapa:
“Escrever a vida, não a minha vida. Qual é. a diferença? […]A diferença é considerar o que aconteceu comigo, o que acontece comigo, não algo único, e sim um material a ser observado a fim de entender, de revelar uma verdade mais geral. Desse ponto de vista, não existe o que é chamado de ‘intimo’, há apenas coisas que são vividas de maneira singular, […] e a literatura ‘rompe com as solidões’. Só assim as experiências da vergonha, da paixão amorosa, do ciumes, do tempo que passa, dos entes queridos que morrem, todas essas coisas da vida, podem ser compartilhadas.”
Estou escrevendo meu primeiro livro, e o medo e a insegurança são meus principais companheiros nessa jornada. Nele escrevo a partir de mim e não sobre mim. Considero o que aconteceu comigo como um material, algo que apenas eu sou capaz de escrever.
Como em outro trecho do livro:“Não conseguia ler a parábola ‘Diante da lei’, em O Processo, de Kafka, sem ver ali a representação de meu destino: morrer sem ter cruzado a porta que era feita só para mim, o livro que apenas eu poderia escrever.”
Na tentativa de descobrir mais ainda dessa autora, encontrei uma entrevista dela no YouTube, na qual ela enfatiza “Memory is my instrument and my element, my material".
Escrever me devolveu a memória e, a partir das minhas memórias, eu escrevo.
✍🏻 CONSIDERAÇÕES
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Ah, e sem poder deixar de citar um de meus autores favoritos, Gabo, que tem uma epígrafe que sempre me atravessou como psicanalista em seu livro “Viver para contar” compartilho: “ A vida não é a que a gente viveu e sim a que a gente recorda. E como recorda pra contá-la!”
Acabei de publicar um texto sobre memória e dei de cara com o seu texto sobre memória. Achei de uma sincronicidade belíssima! ahaaha Amei a referência da Anne Ernaux, não a conhecia. Com certeza vou pesquisar mais sobre!