#10 Não existe pequenas vitórias
comemorar as pequenas vitórias é uma ova, coisa pequena não mexe com a gente assim.
Sugiro que comece ouvindo Heroes do David Bowie e finalize com Celebrar do Jammil e Uma Noites 🎶🎶
Djamila Ribeiro é filósofa, professora na NYU e escritora premiada. Ela é reconhecida não só no Brasil, mas em vários lugares do mundo, sua abordagem envolve as lutas feministas e antirracistas, e aos 43 anos iniciou o processo para tirar sua habilitação. Quanto a esta última vitória, virou manchete, pauta de artigo, assunto de podcast, mulher preta dirigindo, aos 43 anos? Não importa a idade, e nem o motivo de tanta euforia, mas quando a gente conquista algo a gente quer gritar pros 4 cantos, quer levar junto os amigos, os familiares, gente estranha, quer que todo mundo conquiste algo também, não importa o que, encoraja, faz sorri o riso de quem não ri com frequência, quer passar a diante, não por interesse de causar inveja -alguns de fato fazem isso-, não por vaidade, mas por felicidade mesmo, aquela genuína, inocente que não vê maldade no parabéns meio torto do outro, a gente até sente que o mundo está ao nosso favor, que naquele dia ele resolveu girar em torno da gente.
Dito isso, lembrei do dia em que eu iniciei o processo para tirar a habilitação, ou dependendo de onde você mora, “tirar a carta”. O ano era 2017, tinha acabado de iniciar meu primeiro estágio em direito, usei meu primeiro salário e paguei minha matrícula, escolhi tirar apenas para a categoria B, tenho pavor de moto, não tenho coragem e nem desejo. Já na primeira aula senti que não iria conseguir, aquelas aulas em vídeo falando coisas que eu nem sabia que precisava saber, um livro com mais regras que no fim ninguém segue, depois percebi que toda aula teórica era assim, um saco, cheio de coisa que no fim você aprende mais vivendo e observando do que decorando, tive sorte de conhecer três rapazes com quem dividi aquelas noites, conversávamos sobre várias coisas, fazíamos piada, convidávamos mais gente para o nosso grupo rebelde de aula. No final todos foram submetidos a prova teórica, passei raspando, foi mais difícil do que eu imaginei, mas passei, depois prometi estudar por fora para não cometer falta grave no trânsito.
Algumas semanas depois iniciei minhas aulas práticas, estava igual a música do Tiago Iorc, o coração dispara, tropeça quase para. Entrei no carro e imediatamente pensei: “será se eu consigo fazer isso?” Eu não tive aqueles momentos típicos de pai que leva o filho para uma rua deserta e coloca ele pra dirigir pela primeira vez antes mesmo de alcançar idade para tirar a habilitação, até porque acontece com mais frequência com filho homem, convenhamos. Eu cheguei na aula como uma tábula rasa, professor perguntou se eu já havia dirigido alguma vez e fiz que não, ele achou bom, “a maioria das pessoas acabam criando vícios na direção que não são permitidos”. Minhas aulas foram em um Fiat Mobi vermelho, pequeno e confortável, meu professor era bastante prestativo, sempre ligado, conversava à beça, mostrava foto da família, talvez fosse o modo dele de me deixar menos nervosa. A primeira vez que ele me deu as instruções e comecei a dirigir sozinha foi insano, parecia que eu voava, ser capaz de fazer algo acontecer é magia pura, faz a vida ficar mais bonita.
Como todo e qualquer processo, deixei morrer o carro, troquei a marcha errada inúmeras vezes, acelerei quando não era necessário, a gente tem tanta pressa de chegar no final do arco-íris em busca do tesouro, que esquece que o verdadeiro tesouro vem muito antes. Um dos momentos mais emocionantes durante esse meu processo foi dirigir em cima da ponte Pedro Ivo Campos, ela tem cerca de 1.252 metros, tem um visual incrível da cidade e do mar, parecia simples, “só andar em linha reta”, dava para andar mais rápido, parecia simples, mas pra mim não era, cheguei em casa aos prantos, chorei de emoção, era felicidade, orgulho e adrenalina tudo junto, isso é sobre comemorar as pequenas batalhas.
Pequena batalha uma ova, eu não acredito em pequenas vitórias, acredito que toda vitória é grande, não importa a largura, altura ou profundidade, talvez a última, mas ainda assim o tamanho não importa, meu coração palpita rápido do mesmo jeito, coisa pequena não faz isso com o corpo da gente.
Meu processo foi longo, reprovei duas vezes na prova prática, a perna tremia na embreagem, o primeiro erro foi tolo, o segundo eu culpo o morro, bendito morro que quase me fez reprovar na terceira vez, nessa última não tinha mensagem motivacional, eu só sabia pensar “tudo bem se você não conseguir, a gente faz a prova de novo”. Passei, mas ainda assim deixei o carro morrer uma única vez, desliguei o carro olhei para o avaliador, “parabéns, você passou”, agradeci saí correndo, chorei de soluçar, a alegria transbordava em mim, liguei para minha mãe “passei”, peguei o ônibus e fui pra casa chorando com um sorriso de orelha a orelha, não tem quem me convença dessa ideia de felicidade pequena, meu coração é gigante, comemora até quando acha o último pedaço de chocolate na geladeira.
“Celebre as pequenas vitórias, pois um dia você perceberá que elas eram, na verdade, grandes coisas.” autor desconhecido
Sobreviver ao processo às vezes é tão vitorioso quanto chegar no final e ganhar um prêmio, alguns sucumbem no meio do caminho, porque não é fácil, eu não julgo, já chorei sozinha com medo de não chegar na vitória final, na maioria das vezes eu cheguei no final, mas fiquei mais grata pelo caminho percorrido.
Em 2021 fiz a prova da OAB, estava no final da faculdade, ouvi trilhões de vezes “é fácil, você vai passar”, não acreditei nisso nem por um segundo, pra mim nada era fácil. Não passei de primeira. Era necessário acertar 40 questões no mínimo para passar, faltava muito ainda para chegar na média. Eu não queria advogar e continuo não querendo, então pensei que não sentiria muito a derrota, mas senti! Não só senti, como desmoronei. Minha mãe sempre dizia “você não é todo mundo”, lembrei disso enquanto ecoava na minha mente “é fácil, todo mundo passa”.
Catei meus cacos, recuperei a dignidade, enxuguei o resto de lágrimas que ainda teimavam em cair e retornei aos estudos. Para quem não sabe absolutamente nada sobre o exame da OAB, ela acontece três vezes ao ano, pode fazer quantas vezes você quiser até passar, só tem que desembolsar mais de 200 reais para a inscrição. Voltei aos estudos, mas agora eu era formada, tinha um diploma na mão e desemprego, em razão disso tive mais tempo para estudar, resolvi vários simulados, assisti várias aulas, e lá fui eu de novo fazer a prova, tentei ficar tranquila, mas não deu. Meu coração parecia que ia sair pela boca, estomâgo doía de nervoso, deu vontade de correr pro banheiro, ansiedade da dor de barriga. Terminei, fui a um bar terminar de comemorar o aniversário de uma amiga que durava dias de comemoração. No outro dia cheguei a corrigir a prova com base no gabarito preliminar, havia acertado 41, mas não me dei o luxo de comemorar, preferi esperar pela nota oficial. No dia da tão sonhada lista com os aprovados, meu amigo meu amigo me enviou “parabéns”, e eu sem entender “pelo quê?”, em seguida me enviou o link, corri para buscar meu nome e lá estava, chorei de soluçar de novo, contei para minha mãe e meu padrasto, minha mãe puxou com força e me abraçou “eu sabia, eu rezei tanto pra isso, oração de mãe é forte”. Depois de longos meses, fiz a segunda fase e passei. Chorei de novo.
Como meu padrasto costuma dizer “eu choro até com beijo de novela”, porque seria diferente com as minhas conquistas?
Celebrei o dia em que ganhei uma medalha por ter percorrido 5 quilômetros correndo. Celebrei cada minuto da minha primeira viagem internacional com tudo pago com meu dinheiro. Celebrei a primeira vez que ouvi uma pessoa falar em inglês e consegui entender tudo. Celebrei a compra de um ingresso para um show no qual sempre sonhei em assistir. Provavelmente, quando Beyoncé vier ao Brasil, irei gritar aos 4 cantos do mundo a conquista do ingresso -que será concorrido-. Celebrei a conquista do meu primeiro estágio, do segundo e do terceiro. Celebrei meu primeiro salário, meu primeiro celular comprado por mim, meus livros e todas as coisas nas quais consegui graças ao meu trabalho. Celebro e sempre celebrarei as conquistas dos meus amigos, da minha família e até de desconhecidos, ver gente vencer é vitória também.
Não há nada como beber uma água depois de enfrentar um calor de matar em um andar que parecia nunca acabar, celebre isso! Celebre o final da trilha, aquele cansaço infinito, mas com um visual de arrebatar. Fiz festa quando tirei 6 em uma matéria difícil na faculdade, imagina o que eu faria se tirasse 10. A gente tem que celebrar cada coisa, seja matar o desejo de comer uma comida diferente, seja o pôr do sol que resolveu ser mais bonito hoje do que o normal, seja o cachorro alegre, pulando e correndo ao redor da gente, aquela criança risonha, que ri sem motivo até a barriga doer.
Eu sinto muito, e sinto tanto. Sinto tão intensamente cada nova vitória na minha vida, alguns são tão individuais e pouco compreendidos, dizem que sou o gelo em pessoa, que não derrete nem no sol, mas tudo isso não passa de uma mentira, tudo que eu sei é que sou como uma manteiga, derreto até no frio de inverno, qualquer que seja a vitória, deve ser comemorada, agradeço pela dádiva que é conquistar o que se deseja.
Celebrar!
Dance como se ninguém tivesse te olhando dançar
Cante bem alto embaixo do chuveiro
Se olhe no espelho, se ache legal
Quer saber? A vida é carnaval
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✍🏻 CONSIDERAÇÕES
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