#9 Uma tragicomédia contemporânea
quando uma jovem descobre que estava mais dependente do celular do que ela imaginava, poderia ser trágico se não fosse cômico.
Sabe aqueles filmes que o personagem passa por um conflito logo no começo e precisa lidar com isso ao longo do longa-metragem, buscando como mudar, porque mudar e no final espera-se que ele tenha mudado por completo e aprendido uma lição valiosa com tudo aquilo que ele passou?! Pois é, talvez tenhamos um furo nesse roteiro aqui.
A newsletter de hoje está diferente, não é uma tragédia grega, é mais parecido com uma tragicomédia.
ATO 1
Era véspera de feriado, como de praxe acordei às 6 da manhã, fiz meu café preto sem açúcar, comi uma tapioca com ovo e em seguida tomei minha creatina. Após o desjejum, fui ao encontro das palavras, sentada à mesa, de frente ao notebook, comecei a vomitar algumas milhares de palavras sem coesão e coerência -meu processo criativo de escrita e de várias outras pessoas consiste em escrever tudo que vem na cabeça e depois só refinar-. Do lado de fora da janela chovia sem parar. Ao tempo que eu escrevia ia me vestindo para ir à academia, era praticamente um parágrafo mais uma peça de roupa. Quando deu 8 e pouco da manhã, parei de escrever, deixei o texto descansar para depois realizar alterações, revisões e refinamentos de praxe, e fui ao encontro das anilhas e barras da academia. Não importa se faz chuva ou sol, eu sempre vou à academia pela manhã, mas em decorrência do fenômeno La Niña, tem chovido muito em Florianópolis e naquele dia estava mais forte do que eu imaginava, as ruas estavam bastante alagadas, as calçadas intrafegáveis, eu não queria molhar muito meu tênis, então resolvi esperar os três sinais fecharem para poder atravessar no meio da rua tranquilamente, quando isso aconteceu, dei um singelo pulo sobre uma poça de água e atravessei, ao chegar do outro lado pus a mão no bolso e para o meu desespero: “cadê meu celular”; olhei para trás, pro chão e de longe lá estava ele, caído no meio da rua sob uma chuva torrencial, o sinal ia abrir, saí correndo molhei todo meu tênis, fiz os motoristas me esperarem pegar o celular e voltei para a mesma calçada na qual era intrafegável.
Por obvio, fiquei arrasada, havia trincado toda a tela do meu celular, estava com algumas listras coloridas e uma bola preta, voltei para casa e no caminho aproveitei para anunciar minha tragédia, publiquei uma foto nos stores do Instagram com a legenda “Fui inventar de ir na academia e voltei com o tênis ensopado e o celular trincado. Mal consigo digitar”, depois disso meu celular durou cerca de meia hora e se apagou. Eu só consigo pensar na música Era o fim de Tim Bernardes.
Era o fim, tava ali
Debaixo do meu nariz
Como foi que eu não vi?
Como é que eu não percebi?Ela fez parecer
Que nada ia acontecer
Era tarde demais
Na hora que eu reparei
Agora começa a saga sem celular como faziam os incas e os astecas.
ATO 2
Como uma jovem mulher nascida no ano de 1998, faço parte da Geração Z, esse polemico grupo ligados a tecnologia. Então, imagina o drama que me cercava após o infortúnio, isso me fez pensar que toda minha vida estava naquele celular, fotos relacionadas ao trabalho, senhas, meus poemas e anotações, meus dados e contas bancárias -porque algumas eram digitais e só dava para acessar pelo aplicativo no celular-, todo meu dinheiro estava nele, incrível. Por sorte meu WhatsApp web estava logado no computador, consegui avisar a todos da minha tragicomédia
Naquela mesma manha eu tive que sair de casa de novo para socorrer uma amiga, já não chovia mais e isso me deixou puta, já de cara percebi que não poderia pedir um Uber, eu pedi para meu padrasto me dar carona e ele acabou emprestando o carro porque realmente era uma emergência, no instante em que ele me dava a chave perguntou se eu tinha o número dele, ou da seguradora, ou até mesmo o da minha amiga, e eu só soube dizer o da minha mãe porque o número dela termina com o dia e mês do meu aniversário. Já sentada na sala de espera do pronto socorro esperando minha amiga ser atendida, aproveitei o momento para trabalhar com algumas coisas que estavam no Ipad dela, mas ainda assim, fiz exatamente o que muita gente faz quando não tem o que lhe entretenha, olhei para o teto, comi 5 pacotinhos de bolacha que haviam na recepção, tudo para passar o tempo, coisa que o celular servia muito bem.
No decorrer naquele dia, em casa trabalhando, pensei que não havia mais motivo para procrastinar, eu realmente teria que focar no trabalho e terminaria cedo. Além disso pensei como seria sair de casa sem fone de ouvido, já que é de lei que eu saia com eles, agora me restaria ouvir os sons ao meu redor, ouviria as pessoas, poderia até me comunicar melhor, olha só. Não haveria foto na academia, nem da comida, nem de nada inútil que eu estivesse fazendo. Sem dúvida nenhuma, a melhor parte foi não receber mil ligações de bancos e operadoras procurando uma fulana de tal que não conheço, mas deve dinheiro a meio mundo.
Parte de mim sentiu como se houvessem desligado meu gps, eu poderia desaparecer.
ATO 3
No dia seguinte comprei ingresso online para ver um filme cuja sessão estava ficando lotada, lembrei que eu não teria como apresentar o ingresso, então anotei o código dele para imprimi-lo no local, levei um livro para me entreter até a hora do filme e ao chegar no shopping lembrei que eu não teria como saber o horário para não perder a sessão, eu não tinha relógio e nem o bendito celular, então passei uma hora andando de um lado para o outro e sempre perguntando para alguém que horas eram e sempre era cedo demais, resolvi parar para ler um livro e quando eu fui perguntar de novo que horas eram, já faltava 10 minutos, então corri.
Definitiva não era minha semana de sorte, quando o filme terminou fui buscar o carro que havia estacionado em uma rua ao lado do shopping e não consegui ligá-lo, a chave não virava, mexi no volante, apertei a embreagem e nada, tentei inúmeras vezes, saia e entrava do carro, até que não teve jeito, fui a uma cervejaria próxima e pedi o celular de uma moça emprestado e liguei para minha mãe, mandei a localização do lugar do carro pelo WhatsApp e esperei sentada no bar com um livro e um chopp, já que eu não iria dirigir na volta mesmo, a moça do celular foi como o bom dialeto manezin da ilha diz “querida” comigo, até voltou a me emprestar porque meu padrasto havia ligado depois. Meia hora depois, depois de meio litro de chopp e 15 páginas de um livro, meu padrasto chegou e em 5 segundos ele ligou o carro e fomos embora. É aquela coisa, com o outro sempre funciona.
ATO 4
Eu acordo às 6 de segunda à sexta, pulo no segundo em que meu despertador toca, mas e agora?! Como eu iria levantar sem o despertador do celular? Nessa hora você tem certeza que se tornou uma pessoa dependente do celular para tudo, realmente é uma tecnologia formidável, ela ajuda demais, como recusar ajuda? O problema é que chegamos a um ponto tão critico que tudo dependemos dela: a tecnologia. Entregamos nossos dados, contas, números, senhas, fotos e quando eles somem, estragam, quebram, tudo se vai, por isso faça backup.
Resolvi fazer como meus ancestrais, se é que assim eles faziam, deixei a janela entreaberta para que os raios solares entrassem e penetrassem a minha pele me fazendo despertar, o problema que naquela semana trágica e cômica, só chovia em Florianópolis, o céu estava nublado, acordei 8 da manhã.
ATO 5 - A REFLEXÃO
Conversando com um casal de amigos, contanto da minha tragicomédia, lembramos do tempo que não havia celulares tão modernos e redes sociais de fácil acesso, muito menos mensagens instantâneas, tudo acontecia no ao vivo, olho no olho, no máximo uma ligação mais longa, mas era por telefone fixo a conta vinha uma fortuna. Sem comunicação as pessoas chegavam cedo, não tinha desculpa para se atrasar, não tinha nem como avisar do atrasado, dava-se um jeito. Não havia Uber, 99, BlaBlaCar, Cabify, a gente se virava com o que tinha, pegava ônibus, táxi, ia de carona, ia a pé.
Tive contato com a minha primeira rede social em 2008, havia recém retornado a minha cidade natal e para manter contato com os amigos de Manaus, sugeriram que eu criasse o Orkut e assim foi. Anos depois veio o Facebook, relutei confesso, mas me rendi no final. Imagina o mundo que sem Nuback? Não tínhamos nada disso, mas tínhamos muita coisa, o ser humano sabe se adaptar, havia jeito para tudo, menos para a morte já dizia minha mãe. Tudo isso foi um dia desses, mas ao mesmo tempo faz tempo pra dedéu. Só de pensar que quando eu namorei, “a long time ago”, nos falávamos por SMS e quando o crédito acabava, fazíamos uma ligação de 5 segundos para avisar que tinha acabado o crédito e por isso não conseguiria responder, isso quando não apenas ignorava e esperava ter novamente crédito e avisar dias depois porque não havia respondido, imagina que o “ghosting”, que significa o desaparecimento repentino de uma pessoa do outro lado da tela que não te responde mais, nem interage em mais nada, antes era liberado, porque final, todo mundo praticava um pouco de ghosting (risos). Quase beirando o fim do meu relacionamento veio o WhatsApp, a partir daí a demora passou a ser uma tortura, motivo de surto e briga, assim nascia a cultura do imediatismo, o desencadeamento de quadros de ansiedade e depressão em grande parte da população.
ATO 6 - A MUDANÇA PROFUNDA OU NÃO
Lembrei do documentário O dilema das redes, do impacto que a tecnologia principalmente das redes sociais tem sobre nós no individual e no coletivo, há de certo modo manipulação e modelos de negócios que nos mantem sempre conectados à tela, você luta para não cair nas artimanhas, mas quando percebe já foi tarde.
“Nada grandioso entra na vida dos mortais sem uma maldição”.
Sófocles
Pensando nisso tudo, cogitei ficar mais alguns dias sem celular, havia algo interessante nisso tudo, apesar de que eu ainda estava bastante on-line por causa do notebook, mas foi o suficiente para provocar algumas lembranças e pensamentos mais críticos, mas como já dizia o título desse texto, tudo não passa de uma tragicomédia, a tragedia mesmo vem agora… depois de 4 dias sem celular, refletindo e tentando me virar, comprei um Iphone novo, agora última geração, já até derrubei, acho que tô viciada de novo.
tragicomédia
substantivo feminino
TEATRO
obra dramática que contém ao mesmo tempo elementos da tragédia e da comédia.
FIGURADO
mistura de acontecimentos trágicos e risíveis.
😉 RECOMENDAÇÕES
Leia Tudo é rio de Carla Madeira
Assista Kimi: Alguém Está Escutando na HBO MAX
✍🏻 CONSIDERAÇÕES
Café com Açúcar foi criado com intuito de explorar o mundo por meio da escrita criativa, buscando nas entrelinhas o sentido das coisas.
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