#48 Enquanto habitar este corpo que me pertence, reivindicarei lugares
Relatos de uma passagem breve, mas bonita, em Pernambuco
A newsletter Café sem Açúcar é gratuita e enviada todas às quintas-feiras. Neste espaço, registro e relato pequenos acontecimentos da vida cotidiana e os transformo em pequenas crônicas e reflexões, tentando buscar nas entrelinhas o sentido das coisas. Também compartilho textos sobre filmes e séries, trazendo análises, dicas e explicações.
Considere ser um assinante :)
Eu sou especialmente feliz por ser o tipo de pessoa que tem coragem de ser sozinha em situações nas quais quase ninguém quer estar só - pensei isso, enquanto aproveitava minha primeira noite em Recife.
Eu estava sentada tomando uma cerveja em um bar de esquina com a rua Bom Jesus, eleita a terceira rua mais bonita do mundo.
Tinha uma banda tocando frevo e um grupo de pessoas dançando sem parar. Era possível ver que a maioria ali não se conhecia, mas tinham intimidade o suficiente para dançarem juntos. Um senhor que dançava muito bem se tornou o centro das atenções dos dançarinos que tentavam, sem sucesso, imitá-lo.
Reparei que uma mulher da mesa ao lado tinha se levantado e deixado o rapaz que lhe acompanhava para se juntar ao grupo de dança. Por um instante, pensei em fazer o mesmo, mas estava com tanta preguiça que preferi ficar ali apreciando o encontro de desconhecidos.
Dei uma bela olhada no cardápio, mas não tinha nada que me apetecesse os olhos. Descobri ao longo da viagem que todo restaurante em Recife possuía uma lista comprida de sopas e caldos, com sabores jamais vistos e muito menos considerados. Desisti de comer e continuei apenas apreciando minha bela cerveja gelada.
Eu nunca estive em Recife. Já quis muito conhecer Porto de Galinhas, praia dos Carneiros; passar o carnaval em Olinda, mas nunca dava, ou sempre tinha outras cidades como prioridade. Até que, estava desesperada para tirar meu visto americano, mesmo não tendo certeza nenhuma se iria usá-lo logo, decidi ir à Recife - Para quem não sabe, existem apenas duas cidades no Brasil, no qual é possível tirar o visto em um só dia, sem precisar voltar para um segundo encontro. Neste caso, Recife e Porto Alegre, e este último não tinha uma data próxima para mim.
.
Depois de uma temporada em Rondônia, sentindo calor e respirando fumaça, ir para o nordeste era tudo que eu precisava.
Eu estava ansiosa e com fome de viagem há meses. Não consigo me imaginar passar um ano sem fazer uma viagem sequer, tampouco ficar sem fazer uma viagem solo. Eu tenho necessidade de explorar lugares novos sozinha, pois é quando encontro novas versões de mim, e me esbarro em pessoas diferentes.
Poucas pessoas têm coragem de se colocar em lugares sem acompanhante, com medo do que os outros vão pensar. Com medo de que alguém tire uma foto sua escondida e jogue nas redes sociais com a legenda “solidão ou solitude”?
Naquele bar em Recife fiquei olhando para todas as pessoas que estavam próximas, e nenhuma delas parecia me olhar com aquele olhar de reprovação ou tristeza, muito pelo contrário, elas não estavam nem aí, e eu também.
É possível sentir solidão mesmo rodeada de pessoas, já passei por isso na época do colégio, principalmente ensino fundamental, quando tentava me infiltrar em todos os grupos para parecer mais popular, mas no fim do dia, aquelas pessoas não eram nada para mim e eu nada para elas, eu estava só.
A coragem de ser só me proporcionou viagens, encontros e experiências incríveis. Não lembro bem qual foi a primeira viagem sozinha, na verdade, tenho dificuldades para falar que estou indo sozinha, porque nunca me sinto só. Existem tantas pessoas por perto e sempre faço algumas amizades ao longo do caminho.
Em Recife, tive o privilégio de ter como guia turística a amiga de uma amiga. Ela gentilmente me levou para visitar os principais lugares do recife velho, fomos em museus, almoçamos e batemos papo sobre a vida.
Já em Porto de Galinhas, cheguei deslumbrada. Sempre quis conhecer aquele lugar, minha mãe já tinha ido, meus tios, tias e alguns amigos também. Se tem uma coisa na qual eu não tenho mais paciência é de esperar que alguém queira fazer o mesmo que eu quero fazer. Não me parece saudável depender do outro para realizar esses pequenos sonhos e desejos. Eu precisava ser a pessoa que me levasse até lá. Eu precisava ser a realizadora.
Lembro de ir à Fortaleza e sempre dizer ao meu pai que gostaria de conhecer Jericoacoara, mas para ele nunca dava. Minha mãe esteve lá, mas eu não podia ir com ela na época. Então, quando estava prestes a me formar na faculdade, meu padrasto me deu de presente uma passagem área para qualquer lugar do Brasil, escolhi Fortaleza e me levei para Jericoacoara. Sozinha e feliz da vida tomando Mojito.
Em Porto de Galinhas, pedi para que duas mulheres pudessem cuidar da minha bolsa enquanto tomava banho naquele mar azul transparente que parecia, ainda, livre de qualquer poluição. Depois do mergulho passamos boa parte do tempo conversando, ela era carioca e estava acompanhando o marido que estava a trabalho em Recife.
Mais tarde, fui visitar a famosa rua com as sombrinhas coloridas e tinha uma mulher posando para várias fotos. O fotografo era um homem local que sabia como ganhar dinheiro com turista. Ele vendia um pacote com seis fotos por 20 reais. As fotos eram tiradas no celular da pessoa, mas ele tinha a manha, ele sabia exatamente como tirar a foto de modo que ficasse linda e gerasse várias curtidas no Instagram.
Ele pedia para que ela deitasse, fechasse as pernas e puxasse o “bucho” para dentro. Apenas ri e sai.
Alguns minutos depois encontrei aquela mesma mulher das fotos, na orla. Ela me viu e veio até mim rindo comentando sobre o episodio. Nos apresentamos, ela era de São Paulo, estava com a mãe, mas ela mal conseguia andar o dia inteiro, então estava parte do dia sozinha perambulando por aquelas ruas e tomando banho de mar.
Ela contou que viajava com frequência para Porto de Galinhas, e outras cidades do nordeste. Disse que conhecia Manaus, que viu o encontro das águas, que acabou indo para essa viajem do nada, depois de um convite feito por um colega que fez em um hostel. Ela contou que viaja sozinha e que adorava. Seu marido nem sempre tinha tempo para viajar, então ela ia só.
Ficamos boa parte do tempo ali conversando, até nos despedirmos antes de escurecer por completo.
Em outro momento da viagem, fui até a praia dos carneiros com uma agência. Reparei que na van que nos conduzia havia outras mulheres sozinhas, e uma delas se sentou ao meu lado. Eu precisava melhorar o laço que havia feito no meu biquíni, então pedi gentilmente que ela pudesse fazer isso por mim. Depois ela perguntou se poderíamos depois passar protetor solar uma nas costas da outra, já que ela havia se queimado inteira da última vez, e eu respondi que sim, feliz.
Naquela praia conheci um casal de homens muito gentis de São Paulo, - é impressionante como eu sempre conheço paulistas em viagens - ficamos o passeio inteiro juntos.
Há certas descobertas que só é possível fazer quando se está só, e mais do que isso, quando se está só e aberta ao novo.
O medo de ser uma mulher viajante é algo que nunca vai me escapar, e duvido muito que alguma mulher deixe de ter. É preciso reivindicar esses espaços que insistem em dizer que não nos cabem.
“Porque mulher não pode viajar sozinha.”
“Porque o mundo é perigoso para mulheres.”
Enquanto esperava o ônibus que me levaria para Porto de Galinhas, estava aflita e com medo porque estava em um lugar que parecia um pouco perigoso, e eu carregava duas mochilas, tinha meu notebook e meu celular que tentei não tirar do bolso nem para ver a hora. Um homem grande gordo se sentou ao meu lado, ele vendia passagens de ônibus, e começou a conversar comigo. Naquele momento esqueci completamente as regras que nos diziam para não dizer que está sozinha, que um homem vai chegar a qualquer momento, que isso e aquilo.
Ele perguntou se eu estava sozinha, e eu falei orgulhosamente que sim. “É muito legal que vocês agora possam fazer o que quiser e ir para onde quiserem” - disse ele, e completou - tenho três filhas
.
Eu não nasci querendo e sabendo ser sozinha. Eu aprendi.
Lá estava eu, em mais uma cidade, andando na garupa de uma moto, com um motorista meio louco que me fez dar vários pequenos saltos até arrepiar a espinha de medo, subindo as ruas de Olinda.
Olinda era linda de cima, e parecia quase um sonho estar lá. Ainda me lembro do pensamento que me surgiu no momento, eu dizia a mim mesma que minha mãe teria que dar um jeito de sofrer menos com as minhas idas e vindas, porque a filha que ela fez queria mais do que ocupar um lugar, queria explorar a vida, o mundo, as pessoas e a si mesma.
Enquanto eu habitar este corpo que me pertence, sigo caminhando onde me cabe, e tem tanto lugar que caibo.
✍🏻 CONSIDERAÇÕES
Café sem Açúcar é gratuita e enviada todas às quintas-feiras.
Neste espaço, registro e relato pequenos acontecimentos da vida cotidiana e os transformo em pequenas crônicas e reflexões, tentando buscar nas entrelinhas o sentido das coisas. Também compartilho textos sobre filmes e séries, trazendo análises, dicas e explicações.
Considere se inscrever e receber em primeira mão meus textos novos.
📲 OUTROS MEIOS DE COMUNICAÇÃO
LinkedIn - aqui falo sobre escrita, copywriting, conselho coach, mostro meus trabalhos (manda job)
Instagram - sou meio blogueirinha, indico filmes, series e livros
Eu sou totalmente o contrário. Não consigo fazer absolutamente, ou praticamente, nada sozinha. Isso é uma espécie de prisão. Queria muito ser como você. Mas sempre, o tempo inteiro, estou procurando por alguém pra me acompanhar, é tão cansativo.
É de uma valentia libertadora viajar sozinha - também em sentido coletivo. Que relato lindo da sua viagem <3
Tô viajando sozinha pela América do Sul e é fácil esquecer o quanto é preciso coragem para dar esse passo. Ontem mesmo uma salvadorenha e uma colombiana, ambas com mais de 40 anos, me perguntaram se eu não tinha medo e se impressionaram muito com isso. E eu já tô tão acostumada que, para mim, o medo é não sair hahaha
Continue compartilhando essas histórias!