#89 Cantei Luiz Gonzaga com uma italiana e colhi tomates com um gaúcho, no sul da Itália
penso em desistir toda hora que vejo um inseto diferente
A newsletter Café sem Açúcar é um projeto autoral e independente, gratuito para todos e enviada em todas às quintas-feiras. O intuito desse espaço é compartilhar histórias, sejam elas reais ou ficticias. Uma simples ida a uma cafeteria ou uma viagem a Portugal, pode virar uma crônica.
Me sentia quase só, no meio do mundo. Sentada no trem com a cabeça encostada na janela, pensando onde minha loucura tinha me trazido. O que me esperava lá fora. Me senti uma forasteira, quando vi apenas três pessoas descerem do trem e irem embora rumo aos seus lugares, e eu ali, parada em frente a uma estação quase fantasma, em um calor de 36 graus, numa cidade da qual eu nunca tinha ouvido falar.
Era possível sentir meu mau odor, depois de vinte e quatro horas sem tomar banho. Andando de um aeroporto a outro, com uns salgados, biscoitos e uma massa italiana na barriga. E então, o anfitrião com quem eu iria morar nas quatro semanas seguintes chegou e me ajudou a colocar as coisas no carro. O carro estava tomado de poeira e galhos de plantas.
Mais uma vez, pensei: “onde eu tinha vindo parar?”. Um questionamento que eu fazia toda vez que começava um novo voluntariado. Sempre achava que não iria aguentar.
Entrei no lugar, que era um tipo de fazenda — chamavam de agriculturismo. Havia poucas pessoas. Entrei na casa e achei tudo um caos: sujo e desorientado. Nada parecia fazer sentido.
Fui até meu quarto e descobri que não havia ventilador. Havia cortinas daquelas para proteger de pernilongo, eu não via uma dessas desde que era criança e morava em Manaus.
Fui ao banheiro e já me apavorei ao ver que não havia chuveiro. Tomava-se banho sentada na banheira, usando uma torneira para molhar o corpo, algo que eu só tinha visto em filmes antigos. Havia uma mesinha em frente à privada, com um jornal aberto em cima. Outra coisa que eu também só tinha visto em filmes.
Tudo, no primeiro momento, era muito apavorante.
Tomei um banho e me senti, enfim, livre do odor, o mesmo que me fazia pensar nos milhares de franceses fedorentos que perambulavam por aí, carregando todo o mal debaixo de suas axilas.
Naquela noite comi a refeição que considero a mais saudável da minha vida. Tinha todo tipo de legume no qual venho há anos evitando, incluindo o temido tomate.
O lugar onde vim parar produz o que consome, desde o sabonete do banho, até os inúmeros vegetais, grãos e molhos. Na porta da geladeira há um lembrete “Por favor, não trazer comida de supermercado. Obrigado” - frase está escrita em inglês e italiano.
Aqui a alimentação só não é 100% vegana, porque há o consumo de frutos-do-mar. Fora isso, carne, que eu já não comia em razão do orçamento, frango e outros animais, não são consumidos.
E, bom. Para quem não sabe. Eu tenho paladar infantil. Não gosto de coisas que nem sequer provei. E sigo sem intenção de provar certas coisas pelo simples fato de achá-las “nojentas”, me perdoem por isso. Também acho horrível falar isso, mas é a verdade sobre mim. Ninguém é perfeito.
Mas comi quase metade dos vegetais do prato, uma vez que não queria ser tão mesquinha e desrespeitosa com o homem, com nome tipico italiano, Giuseppe, que até quando discute, ri.
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Na manhã seguinte, precisei acordar às 5h20. Coloquei uma roupa que eu achava ser adequada para uma fazenda e levei minha garrafa com água. Pensava que não tinha como piorar… até que lá fui eu colher tomates.
Sim, os tomates que eu não gosto de comer (já tentei gostar dos tomates cereja).
Respirei fundo. Segurei o quase choro e peguei o que consegui. A mulher que estava ajudando naquele dia colhia o dobro de mim, porque sujava as mãos. Eu, só os dedos.
Vi todos os tipos de inseto. A sorte foi que ela também dava gritinhos sempre que aparecia algo estranho, como uma aranha gigante.
Foram três horas me coçando inteira, correndo de gafanhotos como se eles fossem capazes de me fazer algum grande mal. Torci para que não houvesse mais nada, até que fomos recomendadas a colher orégano.
Eu nunca tinha visto orégano daquele jeito. Eis que colhi um pé de orégano. Mas eu já estava tão exausta que achei que fosse desmaiar de fome e cansaço.
Não dormia direito havia três noites.
De volta a minha casa, tomei um belo banho e fui tirar um cochilo. Estava exausta. Foi difícil levantar para almoçar e começar meu turno da tarde, que no caso era meu trabalho remunerado. Meu almoço não foi tão ruim. Arroz e uma torta de algum vegetal verde. Já sofri de antecipação pela noite que viria.
A casa está sempre rodeada de pessoas. É Giuseppe pra lá e pra cá. As pessoas me cumprimentam e sempre tentam conversar comigo em italiano. Digo que sou do Brasil e abrem um sorriso carinhoso. Uma senhora, cujo nome já esqueci, mesmo tento perguntado cinco vezes, veio até mim perguntando de Giuseppe, nunca sei dizer “não sei” ou “está lá”. Fico fazendo sinal com as mãos.
Ela pergunta meu nome e de onde sou. Digo Brasil. E ela fica contente, conta que tem uma amiga “Minha Vanessa”. Ela fala da amiga, que depois fala que era mais como uma filha. Abro o Google tradutor e sigo com ele aberto por longas horas.
Alguns minutos depois ela me chama para ir a uma feira, Giuseppe pergunta se quero ir, e vou. Entro em um carro. Depois paro, e entro em outro. Começo a pensar “vou ser traficada”. Chego em outra cidade, e em uma rua com um restaurante, VEGANO. Instrumentos montados, e algumas pessoas vendendo coisas.
Antes disso ela quis saber se eu estudava algo, e contei que era formada em direito. “avvocato?” (advogada"). Digo que sim, para facilitar. Conto que estou escrevendo um livro. Tento explicar a história, e ela pensa que é um homem se apaixonando por outro homem.
Quando chegamos ao lugar, ela me apresentou para todo mundo como sendo a jovem de vinte e sete anos, advogada e escritora. Todos naquele evento sabiam que eu era essa coisa aí. Todos. Fiquei com vergonha. Até porque eu não estava me sentindo tão escritora ultimamente e, advogada, eu nunca tinha sido de verdade.
Mas enfim. Gostei do carinho que ela teve comigo. Uma desconhecida que sabia falar meia duzia de palavras em italiano, mas que pelo menos sabia ler bem italiano para reproduzir as coisas do tradutor.
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No outro dia voltei novamente para labuta para colher tomates. Desta vez tive como dupla um gaúcho, filho de italianos, com uma filha tailandesa, que mora há anos no sul da Itália. Baixo, contido nas palavras e nos trejeitos. Fiquei sem jeito quando o vi pegar com empenho os tomates, enquanto eu me levantava para revisar as escolhas da minha vida, sentindo dor no posterior da minha coxa.
Minha família materna fez muito daquilo que faço mal um terço. Eles viveram disso por muitos anos. Trabalho que gerou consequências físicas e psicológicas.
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Após dois dias experimentando uma nova atividades e o desejo de desistir a cada dez minutos, fomos andar de barco. O anfitrião me chamou para um passeio, já que o irmão dele tinha disponibilizado um barco a vela.
Eu e minhas amigas já havíamos tentado agendar um passeio desses, mas o valor era alto, e eu nunca podia financeiramente, e a agenda de nenhuma batia. Mas eis que lá estava eu, em um mar azul transparente, com a temperatura perfeita. Embora tenhamos tido problemas para sair e voltar, já que tínhamos pouco vento. Foi preciso paciência. Andamos em círculos algumas vezes. As pessoas nos olhavam achando graça. O rapaz de algum restaurante chique nos chamou por um microfone. Mas no final ninguém tentou ajudar de fato. Eramos nós, quatro mulheres e um homem.
Fomos ainda mais longe. Giramos mais um bocado. E voltamos, quando nem eu, acreditava que era possível.
O dia tinha sido incrível. Jantamos em um restaurante. Finalmente havia comido animais e voltamos para casa exaustos.
Dia seguinte as meninas do barco vieram nos visitar na casa de Giuseppe. E tive mais um daqueles dias perfeitos. Quis chorar na mesa enquanto os via conversar sobre música e politica. Quis chorar porque estava feliz por estar vivendo tudo aquilo. Por me colocar em lugares que jamais imaginei estar. Por ter sido tão bem acolhida e respeitada. Por ver gente feliz. Por ter cantado Luiz Gonzaga com uma italiana. Por lembrar que sou capaz de amar o mundo.
Alargar visão de mundo dá trabalho, exige suor e muitos sustos! Avante!!
"Apenas aquele que atravessou o extremo infortúnio está apto a sentir a extrema felicidade.
É preciso ter desejado morrer, Maximilien, para saber como é bom viver" (Edmond Dantes, em O Conde de Monte Cristo, Dumas).