#68 Quando eu percebi que meus pais estavam envelhecendo
a vida é extraordinária, porque somos imortais
“Os deuses se envergonham com a gente. Eles nos envergonham porque somos mortais. Porque qualquer momento pode ser o nosso último. Tudo é mais bonito porque estamos destruídos. Você nunca será mais lindo do que você está agora. Nós nunca estaremos aqui de novo.” - Frase dita por Aquiles, no filme Troia.
A vida só é extraordinária porque sabemos que ela tem fim. Somos seres mortais, suscetíveis à perda, tanto quanto os ganhos. Nossa vida é nossa, mas também é do outro, porque sem o outro não estaríamos vivos. Assim como posso perdê-la para o outro.
Sempre tive pavor da morte. Talvez seja meu maior medo na vida. Não sei nadar. Tenho medo de cachorro. Tenho medo do escuro. Mas a morte é o que mais mexe comigo. Mais precisamente, a minha morte.
Depois de perder dois amigos muito jovens, comecei a pensar na morte com mais urgência. Urgência de viver. Algo completamente normal, quem nunca se viu pensando na vida depois de uma notícia trágica? Tive muitos momentos que me fizeram pensar nessa coisa impossível de fugir, mas o momento em que você olha para os seus pais e ganha a consciência de que eles estão envelhecendo, sem dúvida nenhuma, é o momento em que você teme mais do que sua própria vida.
Certo dia, minha mãe machucou o pé. Nada de mais no primeiro momento, mas aquilo não curava de jeito nenhum. Acabou dando em gesso. No primeiro dia do gesso, ela caiu estabanada no chão e quebrou outro dedo, do outro pé. Tempos depois, ela descobriu uma doença nos ossos. Seus ossos eram fracos e se recuperavam com mais lentidão.
Outro dia, ela reclamava de dor no estômago - essa reclamação é cotidiana, na verdade - os antidepressivos são muito fortes e acabam com o estômago. Outro dia, ela não conseguia segurar nada, seu ombro operado estava desgastado, o médico disse que poderia se romper.
Na nossa família paterna, há histórico de câncer de mama e já apareceram alguns nódulos na minha mãe, todos benignos. A tal da pré-menopausa chegou com surpresas nada agradáveis.
Não muda muito com meu padrasto que sofre de diabetes e está com sobrepeso. Qualquer andada mais rápida dói tudo e temo sempre que ele caia sozinho na rua e quebre algo, já que a recuperação de uma queda é muito pior para uma pessoa idosa. Quando estamos sozinhos em casa e ele está no quarto, costumo gritar para saber se ele está vivo. Tenho medo de que ele caia duro no chão e eu não perceba.
Meu pai se queixou há um ano de um caroço, não foi ver o que era. Tem alergia ao calor e poeira - impossível de se livrar em Rondônia - e tem sempre umas manchas na pele.
A mente dos três está piorando. Um mais esquecido que o outro.
Apesar dos pesares, todos são fortes e viveram muitos perrengues na vida. Os problemas da velhice se tornam quase fichinha, porém, nenhum deles é imortal.
Meus pais estão envelhecendo e eu comecei a notar isso há uns anos. E a ideia de que eles podem morrer começou a surgir com mais força. Ninguém quer perder os pais, e tenho a boa-fé de que os meus vão viver bastante tempo.
Minha mãe disse certo dia que sonhou com o dia da sua morte. Ela sabe quantos anos terá, mas não quis falar o número, só disse que não vamos nos livrar dela tão cedo.
Ver seus corpos atrofiando. As dores aumentando. A recuperação é mais lenta. Isso é terrível.
Meus pais estão morrendo, não literalmente, até porque estamos todos morrendo. Me sinto pequena, porque não posso fazer nada para adiar esse acontecimento. A vida se movimenta sempre para esse lugar, porque o fim é o que torna as coisas mais bonitas.
Ter essa percepção sobre si e dos outros não é tão simples. A gente vai vivendo, às vezes sem notar que está vivendo, e quando cai por si, é uma doidera.
✍🏻 CONSIDERAÇÕES
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Nossa, eu me dei conta quando eles pediram pra eu acompanhá-los até o carro. Estavam com medo de assalto. Eu pensei: "Nossa, eu agora sou uma figura protetora". Virou a chave.
Meu pai tem 76, caiu recentemente e quebrou um dedo da mão e depois quebrou um dedo do pé tropeçando. Foi gesso nos dois, demorou pra sarar. Ele que cresceu em fazenda caindo de cavalo agora precisa andar com cuidado. É um lugar para onde todos vamos se tivermos sorte. Ótima reflexão, obrigado.