#33 Memórias de um Rio Grande do Sul, Grande
Das minhas idas até o RS, o que mais vi e ouvi foram: histórias
A newsletter Café sem Açúcar é compartilhada gratuitamente e enviada em todas às quintas-feiras. O intuito desse espaço é explorar o mundo por meio da escrita criativa, buscando nas entrelinhas o sentido das coisas.
Compartilho crônicas do cotidiano, reflexões sobre a vida a partir do meu olhar e minha experiência; comento sobre filmes, séries e livros.
A primeira vez que vim para o Sul do Brasil foi em dezembro de 2015. Havia recém terminado o ensino médio, recém terminado meu primeiro namoro, minha mãe havia recém se mudado para Florianópolis. Cheguei para visitá-la consciente de que ela faria de tudo para me convencer a vir morar com ela, o que estava fora de cogitação naquela época.
Lembro que em minha vinda, fomos para o Rio Grande do Sul, o objetivo era passar o natal em Porto Alegre, já que meu padrasto é de lá. Como eu não conhecia absolutamente nada do sul, resolvemos passar duas noites em Canela. Ficamos em uma casa que parecia um pequeno castelo de pedras em um condomínio chique. A casa era do amigo do meu padrasto. Eu nunca tinha visto nada parecido, a não ser em fotos. Você chega nesse tipo de lugar e questiona “isso é no Brasil?”. Naquele mesmo dia fomos a Gramado conhecer o natal luz, que é tudo isso, sim, que dizem por aí. Cheio de luzes e enfeites natalinos, canções e pessoas muito bem vestidas. Tudo era incrivelmente lindo e novo para mim. Três anos depois retornei a Gramado com o meu pai que também não conhecia o sul e ficou encantado.
Depois de passar duas noites em Canela/Gramado, seguimos viagem em direção à capital. Quando chegamos percebi que a cidade era imensa e velha. Sim, vários prédios com estruturas velhas, algumas no estilo mais vintage mesmo, outras acabadas por falta de cuidado. De fato, Porto Alegre é uma cidade velha, mais de 200 anos, não é a mais velha do Brasil, claro, mas é antiga, e, portanto, tem muitas histórias.
Acredito que a coisa mais bonita em algo velho é sua história. Tem coisas que ficam velhas por descuido, as outras pela sua longevidade. Para nós meros mortais, envelhecer é um privilégio, ainda que exista o receio da aparência e o medo da morte, ainda assim, são poucas as pessoas e coisas que possuem a oportunidade de envelhecer. E, assim como os lugares antigos, as pessoas também acumulam histórias.
Estive no Rio Grande do Sul em diversas ocasiões, especialmente na capital. A minha última visita foi em setembro de 2021, nessa época eu era uma recém-formada na faculdade e recém desempregada. Decidi acompanhar minha mãe e padrasto nessa viagem, aproveitando meu "tempo livre", que não era tão livre assim, pois eu estudava para concurso e fazia pós-graduação.
Meu padrasto é gaúcho, gremista, ouve pretinho básico, não toma chimarrão e nem sabe assar uma carne. Nasceu na capital, mas passou grande parte da infância em Arroio Grande, que eu ouso em dizer, peço perdão desde já, que é o fim do mundo. Ou melhor, o fim do Brasil. Ô lugarzinho pequeno e sem nada. Eu não sou muito fã de cidade pequena, mas eu ia, só porque gosto de viajar, porque gosto de conhecer a história das pessoas, e ir a Arroio Grande era sinônimo de conhecer mais a história do meu padrasto e de outras pessoas.
Nessa última viagem, resolvi turistar pelo centro de Porto Alegre, sozinha. Tínhamos nos hospedado em um hotel próximo dali, o que me permitia andar a pé, sempre com muito cuidado, já que sempre ouvi falar que a cidade era um pouco perigosa. Fui até o farol Santander, vi algumas exposições, li um pouco sobre a história da cidade, depois fui ao mercado público, que considero importantíssimo para qualquer pessoa conhecer. Nesse dia havia três mulheres benzendo algumas pessoas que paravam na sua frente, eu quase fui, mas não sabia se tinha que pagar, então nem perguntei, segui para o próximo destino.

Fui ao museu de arte do Rio Grande do Sul, belos salões, amplo e várias obras em exposição. Fui à Casa de Cultura Mario Quintana, conheci o acervo da Elis Regina, vi o quarto do Mario Quintana.


Depois sai e comecei a andar pelas ruas movimentadas e cheias de lojas do centro, entrei em um cebo, o chão da rua havia vários adesivos com “Bolsonaro genocida”. Parei no Café a Brasileira para encontrar a minha mãe e tomar um café.
Sempre que vou à POA, ouço várias histórias repetidas e outras inéditas do meu padrasto, nessa última vez ele comentou que seu pai era motorista de táxi e que certa vez dirigiu para Elis Regina. Ele também conta que era muito amigo da mãe da jogadora Fernanda Garay, que inclusive a viu jogar muito no parque ali próximo do bairro onde morava.
Fomos visitar seu tio de 90 e tantos anos, que não perdia a chance de flertar com uma novinha. Observar sua vitalidade, ainda que com algumas dificuldades inerentes da idade, me fez querer chegar bem assim na velhice.
Algumas dessas vezes fomos à casa de um casal de amigos do meu padrasto e eles sempre nos enchem de histórias divertidas, de viagens que fizeram, de carnavais que pularam, de jogos do Internacional que foram, das celebridades que eles conheciam. Também visitamos os seus parentes, tias, primos e sobrinhos do meu padrasto que sempre nos recebem muito bem, e com muitas histórias do passado.
Nessa viagem passamos no barra shopping sul, comemos Pretzels e no outro dia, seguimos viagem e paramos em Pelotas. Dormimos na casa de um casal de amigos, passeamos pela Praia de Laranjal, jantamos em um restaurante e no outro dia acordamos cedo para primeiro passar na loja de doces, que se você não sabe, Pelotas é famoso pelos seus doces. Compramos uma caixa cheia de doces e seguimos viagem para o fim do mundo, ou melhor, Arroio Grande. Ficamos hospedados em um pequeno hotel, que foi uma escolha melhor do que o último lugar onde nos hospedamos naquela cidade, que, na verdade, era um motel disfarçado com um nome diferente. Atravessamos a divisa para o Uruguai, andamos um pouco pela cidade cujo nome não lembro, mas o preço das coisas estava alto, nem compramos nada. Depois que retornamos, fomos visitar alguns conhecidos do meu padrasto.

Em arroio fomos em um aniversário, comemos e bebemos horrores, meu padrasto estava feliz da vida, estava ‘entre os seus’. Já eu fui embora cedo, estava exausta da viagem, sou meio enjoada para andar de carro.
Mais uma vez, fui inundada de histórias. Lembranças e mais lembranças. As pessoas gostam de contar histórias. Acho que a maioria não percebe, mas somos contadores de histórias natos. Nascemos e morremos contando e ouvindo. Porque é o que somos e o que nos tornamos.
“É o poder das histórias. Não existe ninguém que possa nos derrotar se tivermos pessoas contando nossas histórias.”
Hoje as histórias que ouço são tristes, por vezes esperançosas, mas a maioria trágica. Imaginar que todos os lugares em que estive estão alagados é triste. Felizmente essas pessoas que conheci estão bem. O tio de 90 e poucos anos teve que ser resgatado por um barco, o restante sofre em razão de água, energia, alimentos, e a dor de ver sua cidade submersa. São tantas histórias sendo engolidas.
“A vida não é a que a gente viveu, e sim a que a gente recorda, e como recorda para contá-la.” Gabriel García Márquez
Tenho certeza que ninguém que perdeu tudo, vai querer se recordar desse episódio trágico. Não é o tipo de história que a gente conta com entusiasmo, mas ainda assim um dia, espero que o mais breve possível, se torne apenas história. Coisa antiga.
Li recentemente o texto A casa alagada da
, que fala da dor de ver seu lar ser engolido pela água e a perda das coisas, que não são só coisas, cada qual possui uma bela história, algo para se recordar, algo para o qual você se dedica a guardar e preservar com todo o carinho do mundo.Não sou especialmente apegada a coisas materiais e definitivamente não sou uma pessoa belicosa, mas acho que eu seria capaz de incendiar todos os brinquedos de infância da próxima pessoa que me disser que perdemos apenas coisas.
Nunca são apenas coisas. Salvamos os instrumentos musicais do Felipe, uma parte de quem ele é e do que ele faz. Também acho que salvamos uma mesinha que era da minha bisavó, parte do percurso da minha família. Mas já é certo que perdemos o sofá que pertenceu ao avô do Felipe e a mesa comprida que eu fiz sob medida anos atrás, sobre a qual escrevi quase dois livros inteiros e que estava prometida de presente para o Fred, com quem seguiria sua missão literária. Perdemos livros com dedicatórias, cadernos antigos escritos de cabo a rabo, palavras que nos acompanharam por anos, e agora não mais.
Já me questionei a respeito do que eu salvaria, se pudesse salvar algo, e sinceramente eu gostaria de poder salvar bastante coisa, não pelo apego as coisas materiais, e ainda que seja, mas pela história que permeia cada coisa. Afinal, como adquiri isso? Lá vem história. Quando comprei isso? Lá vem história.
Imagine que você passou meses desejando aquela geladeira que prometia tudo o que você imaginava. Depois de economizar muito, finalmente consegue comprá-la e ainda precisa parcelar um pouco. Quando descobre que ela realmente cumpre todas as promessas, você se sente orgulhoso do investimento. É a sua geladeira, a tão almejada geladeira, cada centavo do seu esforço está ali. Você coloca uma cerveja para gelar em comemoração e guarda uma deliciosa sobremesa nela. Em dia de festa você a usa para guardar os ingredientes de algum prato especial, os refris da criançada. Os vizinhos elogiam, talvez até invejem, mas nada disso importa, porque ela é sua.
Então, chega o momento em que você precisa deixar tudo para trás, não apenas a geladeira, mas todos os seus outros pertences que um dia você desejou, economizou e comprou. Deixar tudo isso é doloroso. Não porque você seja materialista, embora talvez um pouco, mas porque esses objetos possuem alguma história por trás.
Eu não queria escrever um texto triste. Sei que a maioria aqui está exausta de ler e ver tudo relacionado ao Rio Grande do Sul, e não porque ninguém se importa, muito pelo contrário, porque nos importamos e se importar cansa, porque é muita tristeza, aquele sentimento de impotência o tempo todo surgindo. Então façamos o que podemos e acredite, podemos muito.
O Rio Grande do Sul, é Grande. Tem história. Que elas permaneçam.
✍🏻 CONSIDERAÇÕES
Café com Açúcar foi criado com intuito de explorar o mundo por meio da escrita criativa, com o compartilhamento de pequenas crônicas e o textos sobre filmes, séries e livros.
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Lendo o texto lembrei de um trecho do livro Amor nos Tempos do Cólera, de Gabo: "Era ainda jovem demais para saber que a memória do coração elimina as más lembranças e enaltece as boas e que graças a esse artifício conseguimos suportar o passado."
Um beijo.