A newsletter Café sem Açúcar é compartilhada gratuitamente e enviada em todas às quintas-feiras. O intuito desse espaço é explorar o mundo por meio da escrita criativa, buscando nas entrelinhas o sentido das coisas.
Compartilho crônicas do cotidiano, reflexões sobre a vida; comento sobre filmes, séries e livros.

1.
Certo dia, sentada no vazo do sanitário do banheiro de casa, não sei exatamente qual casa, desejei ser menino.
Eu disse “deus porque me fez menina, não sei se quero sentir as dores do parto e da menstruação”.
Ninguém me ouviu, a não ser o ser divino com quem conversava. Eu era uma criança quando proferi essa frase e estava longe de menstruar pela primeira vez.
Minha infância foi marcada por um desejo profundo de fazer coisas que eram destinadas na maioria das vezes aos meninos e não as meninas. Aquela velha história: rosa para meninas, azul para meninos. O que eu sempre achei horrível. Eu sabia de certa forma que ser menina significava sentir dores que não iriam embora facilmente, algumas impossíveis de me livrar em razão da fisiologia do corpo feminino, outras que caberiam a mim, escolher tê-las ou não. Com o tempo fui descobrindo outras dores, aquelas que não são em razão da anatomia, ou fisiologia, muito menos escolha minha.
2.
Assisti há pouco tempo Fleabag, série com duas temporadas, cada episódio bem curtinho. Achei intrigante. Há um episódio fantástico que me influenciou a escrever este texto e me recordou desse desejo antigo de criança em ser um menino.
“As mulheres nascem com dor embutida.
É nosso destino físico. Cólicas, seios doloridos, parto, você sabe. Carregamos a dor dentro de nós durante nossas vidas. Homens não. Eles têm que procurar.
Inventam todos esses deuses e demônios e coisas só para que se sintam culpados pelas coisas, o que é algo que também fazemos por conta própria.
E então eles criam guerras para que possam sentir as coisas e para se tocarem, e quando não há guerras eles podem jogar rugby. E nós temos tudo acontecendo aqui dentro.
Nós temos dores em um ciclo por anos e anos e anos e então, quando você sente que está fazendo as pazes com tudo isso, o que acontece? A menopausa vem. A porra da menopausa vem e é a coisa mais maravilhosa do mundo!
E sim, todo o seu pavimento pélvico desmorona, você fica com um puta calor e ninguém liga, mas então você é livre. Não mais uma escrava, não mais uma máquina, com peças. Você é apenas uma pessoa nos negócios.”
“Oh, me disseram que é horrível.”
“É horrível, mas é magnífico. Algo para se ansiar.”
3.
Tive uma epifania. Nós nascemos com dor embutida. Não só embutida, mas a imposta também.
Inclusive, nesta última semana de fevereiro senti tanta cólica, que eu queria simplesmente nunca mais sair da cama e mesmo assim não estava confortável, porque a dor não passava nunca, nem mesmo após ter tomado remédio para dor. Depois senti um enjoo absurdo, comecei a ir ao banheiro, porque menstruação às vezes causa idas e mais idas ao banheiro para o número 2. Mais tarde, naquele mesmo dia, senti dor nas costas, outro sintoma da menstruação. Meu humor estava horrível, eu queria simplesmente não ter que socializar com ninguém, nem sequer ouvir minha própria voz. Sem falar a agonia de sempre achar que vai vazar a menstruação, que você vai se sujar e passar vergonha. E sabe o que é pior? Daqui a 25 dias irei passar por tudo isso de novo, até que meu próximo problema seja menopausa.
Por um tempo eu achava vergonhoso falar de menstruação, a palavra em si, parecia suja, imagina só falar para um grupo onde há a predominância de homens que você está menstruada.
Eu lembro de ter assistido uma campanha de uma marca de absorventes que colocou a Maisa Silva como garota propaganda e a intenção era falar abertamente de menstruação sem ter vergonha, afinal é natural.
Sim, menstruar é natural e agora eu falo a palavra sem vergonha nenhuma menstruação menstruação menstruação menstruação menstruação.
Sim, eu sangro, tu sangras, ela sangra, nós sangramos, elas sangram, vós sangrais.
4.
Esse episódio de dor terrível que parece que tem um mini monstro dentro de nós, me remete a outro momento da minha vida que me causou até mesmo uma crise existencial.
Mais ou menos quatro anos atrás, fui a ginecologista reclamar que minhas dores no período menstrual estavam fora do normal para mim. Eram dores insuportáveis, minhas costas e minha cabeça doíam. Eu sentia enjoo e tinha diarreia. Meu humor estava horrível, eu poderia cometer um homicídio. Tive que pedir algumas vezes para faltar o trabalho porque estava impossível sair de casa.
A médica me mandou fazer inúmeros exames, cheguei a pagar para fazer o de endometriose, mas não recebi nenhum diagnostico, nenhuma doença, nada. O que me restava era mudar meus hábitos, alimentação, atividade física, estresse, observar o que poderia me causar irritação e evitá-los. Tomar água, chá, fazer compressa, mil coisas. No final ela me fez a seguinte pergunta “Você quer parar de menstruar?”
Congelei por uns segundos. Aquilo me chocou de verdade. Como assim parar de menstruar? Que droga é essa? Que milagre divino é esse? Onde estão vendendo isso?
Então perguntei: “Como assim parar de menstruar?”
“Se você quiser parar de uma vez por todas de menstruar e não ter mais nenhum desses problemas você pode tomar um anticoncepcional X que pode diminuir ou parar completamente por um tempo seu fluxo menstrual. Isso aliviaria seus sintomas. ” - Disse ela.
Ouvir aquilo não me causou alivio. Nem mesmo felicidade. Aquilo me causou uma crise existencial insana. Eu me senti menos mulher. Sim. Na minha cabeça eu pensei que se eu aceitasse eu estaria traindo minha espécie. Eu não consegui me imaginar vivendo sem menstruar, é como se isso fosse me tornar menos mulher. Quase como perder minha identidade, justo o que me faz ser quem eu sou, o que me faz ser mulher.
Claro que isso não define uma mulher, imagina se a Simone de Beauvoir lê isso.
Mas naquele momento, naquela fração de segundos, eu só conseguia pensar nisso. Agradeci, mas neguei a ideia. Fui embora da clínica com minha dor embutida.
5.
Carregamos essa dor para cima e para baixo, aguentamos todo tipo de injustiça de gênero desse mundo, nos deparamos com tantos feminicídios, abusadores, corpos femininos sendo constantemente violados, é como se o mundo quisesse de qualquer jeito nos colocar na posição de “nascidas para sofrer”. Não há um momento de paz, nem mesmo no período da ovulação.
Então sim! Eu queria ser menino. Eu quis ser menino um dia. A vida parecia mais fácil. Assistir desenho, jogar bola, usar verde e azul. Falar um monte de besteira e depois ser defendido “são só meninos, eles só falam besteira”. Se masturbar sem parecer pervertida. Eu queria poder gritar sem parecer louca. Queria que não questionassem o tempo todo minha capacidade, minhas opiniões.
A dor tá longe de ser só a embutida.
6.
Eu estou longe de passar pela dor do parto. Às vezes eu penso se quero realmente ser mãe, na maioria das vezes eu digo que sim e se isso acontecer eu quero ter parto normal. Sim, o jeito mais doloroso de se trazer um bebê pro mundo, que muitas mulheres têm pavor só de pensar, imagina só uma criatura passando pela sua vagina? Em algumas situações é preciso até cortar um pouco para poder sair ele inteiro e depois costurar. Isso é terrível. Eu realmente não sei porque eu tenho tanto desejo de ter parto normal, talvez esse seja o livre arbítrio, mas que porra de livre arbítrio é esse que escolhe sentir mais dor ainda.
Minha mãe tem se queixado da menopausa, ela ainda não chegou, mas está vindo, dizem que existe pré menopausa, que é o que ela está passando. O famoso deus nos acuda. Pelo menos ela não sente mais nada de cólica, às vezes ela fica meio chocada quando eu começo a me contorcer de dor, às vezes preciso me deitar no chão para passar.
Até quando se trata de vida amorosa, me parece que as mulheres sofrem mais. Sim, eu preciso falar pela minha classe. Por isso que quando acontece o contrário eu digo “reparação histórica”.
7.
Eu amo ser mulher e aceito quem eu sou. Mas eu tenho muita raiva também de tudo que é feito contra nós, contra nossa existência.
Já não basta a dor que nascemos condicionadas a sentir. Criam-se mais e mais.
“Não bastassem as surpresas que a fisiologia lhe impõe, as sociedades criam regras para cercear-lhes a liberdade de ir e vir e padrões rígidos de comportamento e moralidade, que não se aplicam aos homens…” - Drauzio Varella
Eu queria jogar rugby.
✍🏻 CONSIDERAÇÕES
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