#20 Pobres Criaturas: um Frankenstein Feminista
em tempos de Barbie e seus discursos feministas, pobres criaturas valoriza os desejos femininos
Poor Things (Pobres Criatura) recebeu 11 indicações ao Oscar e tem Emma Stone como a favorita para levar a estatueta de melhor atriz. O filme é tudo e um pouco mais.
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Nomeado como Frankenstein Feminista, diferente de Barbie com seus belíssimos discursos e um mundo rosa, Pobres Criatura é um mundo mais sombrio, mas incrivelmente cativante, onde Bella Baxter busca explorar o mundo, experimentar o sexo, o conhecimento, álcool, liberdade, entre inúmeras coisas do nosso mundo que estão ao nosso alcance, mas não tanto assim para nós mulheres.
A trama do filme é uma adaptação de um romance homônimo que narra a história de Bella Baxter, um experimento conduzido pelo Dr. Godwin Baxter, carinhosamente chamado de “God”. O experimento envolve trocar o seu cérebro por de um bebê e ver como ela evolui com o tempo. Apesar do corpo feminino adulto, ela vivencia todo o processo de um bebê, que constitui aprender a andar, a comer, a falar, a ouvir e apreciar, a descoberta do eu, do mundo, do conhecimento, do sexo, dos prazeres da vida.
Yorgos Lanthimos tem um jeito muito autêntico de dirigir e escrever. Em O sacrifício do Cervo Sagrado ele não tem medo de explorar os limites humanos e as decisões desesperadas tomadas em circunstâncias extremas. Ele também mostra as estranhezas que fazem parte de nós, que ficam em grande parte das vezes escondidas em quatro paredes, afinal, se expostas, poderiam gerar um rebuliço, o famoso cancelamento.
Em A Favorita, o primeiro filme que vi do diretor, somos conduzidos às intimidades da Rainha Ana, que são expostas de forma íntima, especialmente sua vida sexual com suas duas conselheiras. Mais uma vez ele explora os limites que uma pessoa pode alcançar quando se quer chegar em algum patamar e status. Diferente do Cervo Sagrado, percebemos o uso de lentes grandes angulares, cores vibrantes e uma riqueza de ambientes e vestimentas.
Entretanto, em Pobres Criaturas que ele demonstra seu talento no nível mais alto, com uma imaginação extraordinária. O mundo apresentado neste filme é espetacular, criativo, genial e autêntico, e mais uma vez ele faz uso criativo das lentes. E é incrível ver um homem desenvolver tão bem uma personagem como Bella, explorar sua feminilidade e seus desejos mais profundos. Yorgos não tem medo de falar do desejo sexual feminino, preenchendo assim uma lacuna necessária na representação cinematográfica.
No ano passado enquanto lia a newsletter
, me deparei com a informação de que a geração Z não quer ver cenas de sexo nos filmes e séries. A notícia foi baseada em um relatório realizado pelo Center for Scholars and Storytellers (Centro de Estudiosos e Contadores de Histórias) da Universidade da Califórnia em Los Angeles, a UCLA. Dos 1500 entrevistados, 51% disseram que querem ver mais conteúdos sobre relacionamentos platônicos e amizades, e dizem que sexo não é necessário.Isso me surpreendeu um pouco quando li, mas lembrei que a pesquisa foi feita nos EUA que possui tendências extremamente conservadoras. Por muitos anos o sexo era praticamente inexistente nos programas de TV americana, e com o tempo foi surgindo algumas abordagens tímidas.
Durante muito tempo, as produções cinematográficas colocavam os homens como protagonistas do movimento de liberdade sexual, enquanto as mulheres eram frequentemente retratadas de forma passiva e objetificada. Os homens tinham permissão para agir conforme seus desejos sem serem criticados, enquanto às mulheres era imposto um papel de submissão, restringindo seu desejo ao âmbito da procriação e dos afazeres domésticos. Os prazeres carnais eram associados predominantemente ao masculino.
Apesar das mudanças estarem vindo a passos lentos, tivemos a série Sexy and The City que pode ser considerada uma grande evolução feminina, afinal, temos a maravilhosa Samantha Jones, interpretada pela atriz kim Cattrall, que entregou uma personagem livre sexualmente, dona de si e decidida. Sua abertura para falar sobre sexo, sua disposição em se relacionar com diversos homens e sua frequente aparição nua nos episódios foram revolucionárias para os anos 2000.
Além do desejo de ver mulheres assumindo o controle de suas próprias decisões sexuais, tem-se observado uma diminuição drástica nas cenas de sexo em geral, o que pode ser prejudicial para as próximas gerações. Sexo é normal e natural da vida humana. A representação de relações sexuais em produções cinematográficas e televisivas desempenha um papel importante na normalização e na promoção de conversas saudáveis sobre sexo. É uma maneira de desmistificar, educar, até porque o cinema também tem um papel pedagógico.
Já foi amplamente discutido o fato de que filmes de super-heróis raramente abordam o tema do sexo. Não há nem mesmo insinuações a esse respeito. James Gunn que já dirigiu e escreveu filmes na Marvel e agora trabalha com a DC defende a inclusão de sexo nessas produções "Não é necessário a história alguma, mas ter um universo cinematográfico inteiro antisséptico e desprovido de sexo é uma negação de quem somos enquanto seres humanos".
Recentemente o diretor Kleber Mendonça fez um comentário sobre Forrest Gump no Letterboxd:
Fui rever depois de 30 anos (vi no cinema, no lançamento, e nunca mais, não tenho na minha coleção, mal sinal) e fui rever hoje com crianças. Quase paro aos 20 minutos, “o que estou mostrando para essas crianças de 2024?”. Parece um filme batista onde o herói assexuado só transa para procriar e a mulher boa (progressista) é uma perdida que morre, nem vou mencionar como, é complicado. É triste, como visão de mundo. Me fez pensar na ideia de sucesso popular, tenho certeza que dá para ser mais aberto para o mundo sendo menos falso.
Eu particularmente adoro cenas de sexo, desde que bem feitas e bem contextualizadas. Por exemplo, eu e várias outras mulheres no Twitter repudiamos a cena de sexo em Oppenheimer, sendo desnecessária. Tive a sensação de que só queriam expor o corpo nu da Florence Pugh sem proposito nenhum, e Christopher Nolan tem essa reputação de não saber retratar mulheres em seus filmes.
Diferente da série Bridgerton que na primeira temporada traz ótimas cenas de sexo, muito bem coreografadas, porque elas precisam mesmo serem coreografadas para ficarem mais próximas da realidade e, ao mesmo tempo respeitar os atores. A segunda temporada eles já começaram a diminuir as cenas, sendo que os livros da autora da saga Bridgerton são recheadas de cenas de sexo.
Em Pobres Criaturas, somos apresentados a uma narrativa envolvendo uma personagem que explora seu próprio corpo e descobre como alcançar o prazer de forma autônoma. Ao longo do filme, ela busca por aventuras e experiências, que vão além do âmbito sexual, embora o filme contenha diversas cenas de sexo. É fascinante observar a representação da mulher como detentora do controle sobre o próprio corpo, livre para tomar decisões sem restrições. Apesar de os homens ao seu redor inicialmente demonstrarem apreço e encantamento, no desenrolar da trama, muitos tentam controlá-la, reproduzindo padrões culturais que buscam castrar a liberdade feminina -inclusive o ato de castrar é mencionado no filme-.
Como já havia mencionado em meu texto sobre o que o cinema me ensinou, o cinema não se limita a ser uma mera reprodução da realidade, mas sim uma reinvenção e reimaginação dela. Nesse sentido, ele tem o poder de abordar questões complexas, como a sexualidade feminina, e oferecer uma perspectiva única e provocativa, gerando reflexões importantes sobre o papel e a autonomia das mulheres na sociedade.
✍🏻 CONSIDERAÇÕES
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Adorei suas reflexões sobre o papel do sexo no cinema e em Pobres Criaturas. Estando no espectro assexual, não me sinto tão confortável em falar sobre isso, mas quando vi essa pesquisa (exatamente no the news também kkk), fiquei pensativa. Eu cresci muito resistente a cenas de sexo, especialmente as rasas e sem sentido de muitos filmes (que só parecem cumprir tabela), mas também muito porque meio que assusta? Mas não parece bom que uma geração inteira cresça resistente a algo natural a (quase) todo ser humano. Claro que eu queria também mais representações assexuais e platônicas, mas não estamos nem perto ainda de realmente normalizar o sexo, especialmente quando a iniciativa e o protagonismo é da mulher. E eu TAMBÉM vi esse comentário do Kleber no Insta (chocada com as coincidências, a gente deve compartilhar o mesmo feed kkkkk), acho que esse é o tipo de bagagem cultural que minha geração tá construindo, além de Marvel, Disney e outros. Voltando aquele negócio de esperar até o casamento, transar só com a pessoa "certa" (sem ter nem como saber se isso existe), o moralismo de se guardar para o sexo e até mesmo a falta de contato humano, de ser vulnerável com outras pessoas. Perdão o textão, fiquei empolgada com o tópico kkk Posso compartilhar esse post na minha próxima newsletter? Acho que complementa bem um post que fiz ontem (eu tinha até comentado que a análise sobre o sexo no filme seria um assunto super interessante à parte).