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No interior a vida é diferente.
Quando eu morava em Manaus e ia visitar a família em Rondônia, costumava passar mais tempo no interior, pois é de lá que minha mãe veio e onde minha avó materna ainda vive.
Na época eram cinco tios e duas tias, e apenas dois primos. Em uma dessas minhas visitas, quando estava prestes a retornar para a capital, recebemos a notícia que o tio mais novo havia falecido em um acidente de moto. A notícia soou estranho para mim que, dias atrás, estava andando na garupa naquela mesma moto com ele. Tive a primeira experiência em um enterro, fiquei quieta, sentada de longe, me recusei ir até o caixão, até hoje não gosto de me aproximar.
Desta vez estava retornando para o interior, depois de mais de três anos.
Entrei no ônibus e tinha meia duzia de pessoas. Inclinei minha cadeira para dormir e tampei meus olhos com um tampão. Adormeci lentamente, ainda que com muito sono, após acordar antes das três da manhã pelo meu pai, que estava preocupado com a possibilidade de eu perder o ônibus das quatro horas.
Um homem no qual não cheguei a ver o rosto, assistia um vídeo sem fone de ouvido. Tentei prestar atenção no som para saber do que se tratava, mas não consegui entender.
Três horas depois, o ônibus fez sua primeira parada. Desci para tomar um café preto, e recebi um copo com açúcar e café. Há algo curioso e cultural no que diz respeito ao modo como fazer o café em cada região. É comum em Rondônia ir a uma padaria/lanchonete e na casa de alguém, e te darem um café cheio de açúcar sem você sequer pedir. Certa vez pedi um café preto em uma padaria próxima à casa do meu pai e senti de longe o cheio do açúcar e pedi que trocassem por um sem. Minha avó sabendo que não tomo café com açúcar disse em uma manhã “fiz um café amargo como tu gosta”, tomei o primeiro gole e percebi que o que ela havia feito era diminuir as colheradas de açúcar, pois ainda continuava muito doce. Como se de duas toneladas, houvesse uma só.
Faltava duas horas ainda para chegar no meu destino, e os passageiros haviam sido renovados. Eu era a única que se matinha. Tento dormir novamente e dessa vez, uma mulher agitada começa a ouvir áudios do WhatsApp acumulados da noite anterior. Contei pelo menos quatro boas noites, três perguntas se ela estava bem.
Cheguei em Jaru bem cedo, a estrada estava tranquila, só houve um momento em que espiei de baixo do tampão o ônibus ultrapassar duas carretas e senti frio na espinha. Achei melhor não ver nada e morrer sem perceber nada também.
A cidade onde minha avó vive, possui cerca de 51 mil habitantes. A cidade recebeu esse nome em homenagem ao rio e à nação indígena dos Jarus. Ela tem a fama de ser a “cidade dos loucos”. Dizem que lá tinha um hospício, mas não sei mais nada além de boatos.
Minha avó mora no mesmo terreno da minha tia, a única filha que permaneceu morando em Jaru. Todos os outros estão divididos em lugares diferentes do Brasil, exceto dois tios que moram no sítio distante, mas ainda em Rondônia.
Dona Maria das Graças, é o nome de minha avó. Ela é de Manicoré, interior do Amazonas. Ela conta que é indígena, tem mais cinco irmãos, um deles desaparecido. Passei parte dos meus dias na casa dela, conversando, dormindo e comendo. Eu costumava odiar ir para o interior, como uma boa patricinha que prefere cidade grande, o que não mudou, mas eu estava mais sensível e considerando que era importante aproveitar a existência de minha avó, passei um tempo tranquilo.
Minha madrinha de batismo veio do sítio para me visitar. Costumo falar para os outros que ela é meio bruxinha, porque ela trabalha com massagens, e algumas dessas são tão milagrosas que não servem apenas para ameninar dores físicas, mas interiores, aquela da mente e do coração. Ela contou que teria que fazer oito massagens em uma sobrinha que chegaria na cidade naquele dia, porque a criatura teria ficado em recuperação em dez matérias. Por algum motivo, a massagem ajudaria, nem perguntei que santa massagem era aquela.
Uma vez minha madrinha tinha feito uma massagem na minha cabeça e um teste envolvendo uma pedra, que a fez concluir que eu era uma pessoa medrosa e indecisa. Contei isso para minha mãe e ela discordou veemente, disse que se tinha uma coisa que eu não era: medrosa.
Não tínhamos muito tempo para conversar, tampouco para fazer massagem, então ela resolveu massagear meus pés e mãos, porque minha mãe tinha dito que eu sentia dor na coluna e, também porque aquele tipo de massagem era melhor para conversar. Esclareci que não sentia dor na coluna, na verdade, sentia dor no nervo ciático. Ela apertou a sola do meu pé e perguntou se eu sentia dor, e respondi que não. Ela achou estranho, foi então que eu disse que a dor do nervo dava no lado esquerdo. Quando ela apertou o outro pé, doeu tudo.
Depois ela pegou na minha mão, apertou aquela parte do tecido entre o polegar e o dedo indicador, mais uma vez o direito nada senti, em contrapartida, o esquerdo tudo doía. Antes disso ela apertou um dos dedos do pé que me fez arregalar o olho, e explicou que ele era o dedo da visão.
Descobri que usar a palavra transição de carreira não era das melhores opções, pois nem todos entendem de primeira, sempre preciso explicar. Assim disse e expliquei, detalhei, e por fim, finalizei: “sempre quis ser escritora, preciso tentar.” Ela sorriu, achou o máximo.
Quando lhe contei de alguns sonhos, desejos de conhecer o mundo, do amor por viajar sozinha, da vontade de ir embora de Florianópolis, do modo como me relaciono com as pessoas e família, ela olhou para mim e deu um sorrisinho de quem entendeu tudo. Ela viu semelhança em nós duas e disse que meu lado espiritual era muito aflorado, o que não compreendi, porque tinha dito anteriormente, que não era religiosa, nem gostava mais de igreja.
Ela me perguntou se já sonhei com o futuro, aquela coisa de sonhar com algo que ainda vai acontecer e depois realmente acontece. Digo que não, pelo menos não lembrava. No máximo algo que queria muito acontecia.
Ela falou que meu lado desapegada era o que me tornava tão espirituosa. O que achei estranho, já que para mim, ser desapegada era visto como algo ruim.
Contou que rezava por mim sempre, e eu contei que rezava por ela também, mas da minha maneira agnóstica.
Conversamos sobre sinais divinos, e eu falei de sincronicidade.
Gosto de ouvi-la falar, porque ela escuta e não julga. Nada passa despercebido, mas não me enche de lições de moral. É engraçado pensar que ela, com toda calma do mundo e espiritualidade, era uma grande amiga da minha mãe nos temos de adolescência. Logo minha mãe nervosa e sempre estressada.
Descobri algo novo, minha mãe já quis ser policial. Minha madrinha contou que era um sonho, algo que ela falava com frequência. Às vezes queria que minha mãe tivesse sonhos, ou pelo menos tivesse tido sonhos no passado. Ela não se tornou policial, mas se casou com um.
Naquele mesmo dia, na ameaça do sol se por, minha tia e seu marido param de fazer tudo o que estavam fazendo. Se reuniram na sala e colocam um louvor para tocar. Eles são adventistas, a partir das 18 horas de sexta, até as 18 horas de sábado, eles não podem fazer nada. Eles só rezam e dormem, basicamente.
Participei do momento de transição do horário. Observei seus movimentos. Minha avó é católica, e quando minha tia anunciou que iria se batizar em outra igreja anos atrás, parecia que tinha anunciado uma guerra na família. Minha avó e minha mãe ficaram horrorizadas. Aquilo foi como enfiar uma faca no coração delas, foi impressionante. Tentei amenizar na época, mas fui ignorada. Eu e meu padastro assistimos de perto aquele momento, e sabiamos que não adiantaria falar que era besteira aquela preocupação toda, elas estavam a beira de um colapso.
Depois de ouvir o louvor, ouvir um versículo da bíblia, fizeram uma roda para orar, eu me juntei tão somente em solidariedade, não queria passar a imagem de odiadora de religiões. Minha avó acha que sou ateísta e eu até tentei explicar que não era verdade.
Outro fato curioso é que em Rondônia, a religião predominante é a evangélica. Ouso dizer que, ou alguém vai passar a frequentar a igreja, ou ela vai sair de vez depois de um longo período nela, é como uma passagem natural e necessária da vida de quem vive lá. No meu caso, faço parte do segundo grupo. Visitei e frequentei várias igrejas evangélicas enquanto fazia catequese. Tentei por muito tempo me fixar em uma, namorei um assembleiano, e hoje sigo sem religião. Amém.
Para finalizar aquele dia cheio de histórias, revelações e até momento de oração. Resolvi ir a um culto da igreja adventista, para deixar meus parentes felizes e para comer o bolo que minha tia havia feito para o final do culto. Compartilhei com os amigos de que aquilo era um experimento social, e ao final, odiei. Me arrependi amargamento no instante em que começaram a falar que deus criou o homem e a mulher, e o todo o resto era pecado.
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, da escritora Carol Bensimon, e vencedora de um Prêmio Jabuti de Melhor Romance em 2018, estou adorando acompanhar seus textos e passei a assinar o plano pago para pegar dicas de escrita.eu escrevo para não afundar, leitura gostosa e rica da
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É curioso para mim, que vim do Sul e me tornei amazônida, acompanhar o movimento inverso, da Emanuella, que está querendo expandir seus horizontes geográficos e culturais. O choque entre mundos é inevitável. Como lidar com isso definirá o que esta nossa cronista se tornará...
sempre que leio um texto sobre um brasil que eu desconheço (no caso, a região norte), tenho vontade de sair viajando por aí para me descentrar. acho que fiz um pouco isso na leitura. obrigado! 😊