#39 Os desenhos da Pixar são para adultos?
A magia da Pixar é exatamente essa, atingir dois públicos diferentes com a mesma narrativa.
A newsletter Café sem Açúcar é compartilhada gratuitamente e enviada em todas às quintas-feiras. O intuito desse espaço é explorar o mundo por meio da escrita criativa, buscando nas entrelinhas o sentido das coisas.
Compartilho crônicas do cotidiano, reflexões sobre a vida a partir do meu olhar e minha experiência; comento sobre filmes, séries e livros.
“Desenho é coisa de criança”. Essa ideia perde a validade no instante em que você se senta para ver um desenho com o selo da Pixar e se vê chorando copiosamente pensando na sua vida.
Li a matéria realizada pela revista El País Brasil, intitulada: “Sete momentos em que a Pixar se esqueceu que havia crianças na sala”. Nessa entrevista, eles conversam com John Lasseter, ex-diretor de criação da Pixar Animation Studios que diz “a animação é o único gênero que realmente cativa toda a família.”
O fundador afirma que o conceito de para todos os publicos, é justamente o de “desenvolver narrativas em dois níveis paralelos, com duas leituras alternativas, uma mesma cena apela às crianças e aos adultos, despertando sentimentos distintos e deixando uma marca diferente em cada um.”
Não consigo pensar em outra maneira de abordar temas importantes, adicionando cores e cenas engraçadas, que atinja todos os públicos, como um desenho, até porque, em alguns momentos, o adulto está apenas acompanhando a criança, mas acaba se envolvendo com a história.
A decisão de introduzir essas narrativas para ambos os públicos é bem ousada, até porque, existem cenas que definitivamente apenas adultos são capazes de entender, e para as crianças, serão completamente ignoradas, porque elas não são o público alvo daquela cena em específico. Exemplo é o filme Up: Altas Aventuras, que tenho certeza de que crianças muito novas jamais entenderiam o peso do drama inicial sobre o relacionamento de Ellie e Carls.
Eu sou apaixonada pela criatividade da Pixar de criar narrativas envolvendo algum aspecto da vida, como morte, proposito, amadurecimento, sentimentos, dores, medos. Todos os filmes abordam questões extramemente humanas e cotidianas, que geram reconhecimento e conexão do público.
No dia 20 estreou "Divertida Mente 2", a continuação do grande sucesso que foi o primeiro filme. O motivo de tanto sucesso com o primeiro se deve ao fato de ser uma história extremamente humana.
O filme traz uma ótima reflexão sobre o fato de que todos nós carregamos dentro de nós mesmos emoções e sentimentos como tristeza, felicidade, raiva, medo e nojo. Às vezes negamos algumas dessas emoções ou não lhes damos a devida importância, mas todas elas fazem parte de quem somos.
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Existe um curso online gratuito criado pelas próprias pessoas que trabalham na Pixar que ensina sobre o storytelling da Pixar. O curso é totalmente em inglês, mas vale muito a pena para quem quer aprender mais sobre narrativa ou tem curiosidade de saber mais sobre o universo mágico das histórias da Pixar.
Como eles conseguem fazer filmes tão profundos, divertidos e reflexivos? Esse curso é uma excelente oportunidade para descobrir os segredos por trás do sucesso da Pixar e, também, para quem quer aprimorar suas habilidades de contar histórias, que foi o motivo pelo qual me interessei e comecei a estudá-lo.
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No final do ano de 2023, iniciei um curso de roteiro, e com isso consumi uma série de materiais contando sobre o processo de escrita e como escrever um roteiro interessante. E é unanime, não só para roteiro, que para desenvolver uma história, ela precisa ter um problema. Querendo ou não, nossa vida gira em torno de tentar resolver algo que não está nos agradando, ou agradando o outro, estamos sempre buscando solucionar algum problema, e depois aparecem novos problemas.
No caso das histórias, os obstáculos ao longo desse caminho ajudam os personagens a identificar seus desejos e necessidades, criando conflitos que impulsionam a narrativa. Afinal, poucos de nós se identificam ou se interessam por histórias perfeitas, sem grandes empecilhos, porque ninguém é perfeito e nada na vida é linear.
O segredo dos grandes escritores da Disney é simples: escrever sobre pessoas reais, experiências reais e sentimentos reais. Para criar essas histórias incríveis, é preciso fazer algo básico, que é: viver.
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Em “Monstros S.A”, Sulley quer ser o melhor assustador, mas precisa ser uma figura paterna.
O filme fala sobre paternidade. Confesso que só entendi isso quando fiz o curso, porque faz muitos anos que vi o filme e, na época, só achei engraçado. Mas agora, como adulta, consigo entender e encontrar sentido. Não sou mãe, mas sou filha rsrs, e o método mais tradicional de criar um filho na nossa sociedade tem sido há milhares de anos (não sei) através do medo; usando repressão, castigos, palmadas e outras atitudes violentas.
Em “Monstros S.A.”, o mundo gira em torno de assustar crianças, e a energia da cidade vem dos gritos de medo. Até que Mike e Sulley descobrem que é possível gerar energia pela risada das crianças. A ideia não é bem recebida inicialmente pelos superiores, porque muitos não querem abandonar os métodos tradicionais. Ainda há quem pense que bater nos filhos é a melhor maneira de educar, mas sabemos que não é.
O paralelo é: assim como em Monstros S.A., podemos alcançar os mesmos resultados na criação de filhos e na geração de energia na cidade dos monstros através de métodos que acolhem, ouvem, dão amor e fazem as crianças rirem e serem felizes.
O clássico “Procurando o Nemo”, também um filme que na primeira vez que assisti não entendi a questão da paternidade e da proteção excessiva que alguns pais tem sobre seus filhos, não tinha como né?"!
Marlin ama seu filho Nemo mais do que tudo. Devido ao trauma de ter perdido sua esposa e todos os seus outros filhos, ele superprotege Nemo, com medo de perdê-lo também. Isso é totalmente normal na maternidade/paternidade. Digo isso porque minha mãe ainda é bastante protetora, e sendo filha única, compreendo bem esse medo.
Os pais tentam proteger os filhos do mundo a todo momento, mas esquecem que é mais eficaz ensinar os filhos a se protegerem. Infelizmente, algumas coisas são inevitáveis, e isso é exatamente o que acontece com Marlin. Todos os dias, Marlin tentava proteger Nemo do oceano, que ele tanto temia. Até que um dia, Nemo foi levado por um mergulhador. Aqui eu vou apenas reproduzir o que um dos professores do curso de Storytelling da Pixar disse sobre o filme:
“Por causa disso, Marlin teve que deixar a segurança de seu recife natal para encontrar seu filho. Por causa disso, Marlin encontrou tubarões, águas-vivas e outros perigos. Por causa disso, Marlin foi forçado a dar um salto de fé. Até que finalmente Marlin aprendeu a se livrar do medo e confie que Nemo tinha o que é preciso para libertar Dory da rede de pesca. Desde aquele dia, Marlin deu ao seu filho Nemo o espaço que ele precisava para aprender sozinho. A moral da história é que os pais precisam deixar ir para que seus filhos cresçam.”
“Red: Crescer é uma Fera”, filme de 2022, fala sobre menstruação. Um dia, a personagem Meilin, de 13 anos, acorda e se transforma em um panda vermelho gigante, fazendo uma analogia ao momento em que as meninas entram na puberdade, vivenciam a primeira menstruação, a famosa TPM, e todos os turbilhões de sentimentos e desafios dessa fase.
A principio, na família de Meilin, a transformação de mulheres em um panda vermelho é uma herança ancestral, que com o decorrer dos anos, foi sendo visto como uma herança ruim, e com isso, as mulheres da família tentam reprimir essa parte delas. No entanto, com o tempo, cada mulher aprende a aceitar sua fera interior, porque todos temos um turbilhão de emoções, e a repressão nunca é o método mais saudável.
Além disso, menstruação é normal, horrível para quem vivencia, mas é normal, e não devemos ter vergonha de falar sobre isso. Eu me identifiquei muito com o filme, porque tem a questão dos relacionamentos de mães e filhas, esses temas sempre me pegam.
O filme “Soul” me fez pensar um trilhão de coisas e chorar a beça. Lançado em 2020, durante a pandemia, me fez pensar muito sobre minha carreira, meus sonhos e futuro. Joe é um professor de música do ensino médio frustrado, porque sua verdadeira paixão é o jazz, e ele sonha em viver disso, tocando em uma banda. Ele acredita que sua vida só terá sentido se ele alcançar esse sonho.
Quando ele finalmente consegue, acaba se sentindo angustiado. Isso me fez pensar sobre como idealizamos nossas profissões e carreiras, imaginando mil coisas que nem sempre correspondem à realidade. Inclusive, citei esse filme no meu texto "O Abismo da Idealização", porque ele mostra como nossa visão idealizada pode nos levar a desilusões até mesmo no trabalho.
É verdade que sonhos nos movem a seguir em frente, mas, ao redor dos sonhos, temos uma vida para ser vivida. Em "Soul", Joe viaja para outra realidade onde precisa ajudar uma alma a identificar sua paixão e propósito de vida. É como se cada um de nós precisasse ter um único sonho para viver em função dele.
Ao longo dessa jornada, Joe descobre que o sentido da vida vai além de um único objetivo ou sonho. Ele percebe que a vida é feita de pequenos momentos e experiências que ocorrem ao longo do caminho. "Soul" aborda questões existenciais, mostrando que, embora nossos sonhos sejam importantes, eles não são tudo. A vida é para ser vivida e apreciada em todos os seus aspectos, grandes e pequenos.
Meu filme favorito da Pixar é "Wall-E". Cada vez mais, o que acontece no filme parece uma previsão do futuro da nossa humanidade. O tema central é a sustentabilidade e as relações humanas. Wall-E é um robô deixado na Terra para limpá-la, enquanto os humanos tiveram que se retirar devido à poluição atmosférica e ao lixo acumulado, indo viver em uma gigantesca nave espacial.
Wall-E se encanta quando encontra uma planta sobrevivendo nessas condições e a leva para casa. Dias depois, uma nave pousa e traz um robô mais moderno, Eva, por quem Wall-E se apaixona e a persegue por toda a galáxia.
Dentro da nave espacial, os humanos vivem em cadeiras flutuantes com computadores bem na frente de seus rostos, o que é a única forma como se comunicam. Dois amigos conversam por computador sem perceber que estão sentados lado a lado fisicamente. Esse é um filme de 2008, mas poderia muito bem ser de 2024, refletindo o distanciamento social e a dependência das redes sociais que vemos hoje.
Essa newsletter vai ser longa mesmo, não pude evitar, ou na verdade, nem fiz esforço nenhum para que fosse curta, só segui o fluxo do que imaginei que seria legal e interessante.
Bora lá, falemos de “Divertidamente”. o primeiro filme estreou em 2015, e confesso que demorei bastante para assisti-lo, pois estava naquela fase de resistência a ver filmes de animação, já que sou adulta agora. No entanto, dei uma chance e terminei o filme quase como se tivesse saído de uma sessão de terapia.
Como mencionei no início deste texto, todos nós temos emoções - raiva, medo, tristeza, alegria e nojo. Todas essas emoções são essenciais para nos preparar para os eventos da vida. Nenhuma delas é mais importante que a outra; todas se complementam e nos fazem humanos.
🚨SPOILER ALERT🚨
Em "Divertidamente 2", vemos novas emoções surgindo à medida que Riley, a protagonista, entra na adolescência. Ansiedade, vergonha, tédio, inveja e nostalgia são os sentimentos novos da Riley. Adolescência é um período em que é fácil se perder, pois estamos em busca de reconhecimento, espaço e uma comunidade para pertencer.
É comum tentarmos ser alguém que não somos, digo isso porque minha adolescencia foi assim, demorei anos para descobrir quem eu sou, e nesse meio termo, tentei ser muitas coisas só para me encaixar.
No filme, a ansiedade desempenha um papel crucial, como muitos de nós já sabemos, pois ansiedade é um tema que cada vez mais vem sendo falado, está relacionada à preocupação excessiva com o futuro, tentando controlar não apenas o presente, mas também o que está por vir, e todos os infinitos possíveis desse futuro. No filme, o personagem tem o papel de proteger Riley do abandono e garantir que ela tenha amigos. A ansiedade busca assegurar um futuro mais vantajoso para ela, mas perde o controle, e começa a ter surtos emocionais.
No entanto, não é apenas a ansiedade que perde o controle. A Alegria construiu uma máquina para descartar todas as memórias ruins de Riley, na tentativa de evitar que ela não tivesse memorias ruins. Isso reflete a ideia de que tentar manter uma vida positiva o tempo todo, conhecida como “positividade tóxica”, é insustentável. Somos seres complexos, um turbilhão de emoções, e são nossas experiências, tanto boas quanto ruins, que moldam quem somos e criam nossas convicções de vida.
É mais saudável aceitarmos todas as nossas emoções, incluindo ansiedade, inveja, vergonha e tédio, sem tentar controlá-las a todo custo. Reprimir sentimentos é muito bem dito por aí que não é a melhor escolha, a conta sempre chega no final.
Eu gostei muito de terem trago a inveja no filme, pois é um sentimento completamente normal. Isso em razão da ideia cristã e os sete pecados capitais, por causa disso a inveja muitas vezes é reprimida. No entanto, é importante reconhecer que a inveja, como qualquer outro sentimento, pode ser prejudicial em excesso, mas não deve ser negada. Na verdade, podemos aprender muito com ela.
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Esse é o poder de boas histórias, se conectar com as pessoas em um nível emocional, sem necessariamente gerar identificação, mas pegar algo que anteriormente era único e fazer o outro sentir como seria.
Qual seu filme favorito da Pixar?
✍🏻 CONSIDERAÇÕES
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Pensei muito sobre isso depois de assistir "Coco: a vida é uma festa" – que deveria se chamar "Coco: a vida é uma desgraça" hahaha.
Eu sou completamente apaixonada pelas animações da Pixar e acho incrível como a nossa visão sobre a história muda conforme crescemos. Procurando Nemo é meu filme favorito porque eu tinha uma fita cassete dele. Quando criança, entendi a história pelas lentes do Nemo. Hoje, já adulta, consigo enxergar pelas lentes do Marlin. Adorei essa edição :)