#32 Carta para minha mãe
Escrevo esta carta na semana do dia das mães, e espero que ela seja lida um dia pelo seu destinatário.
Querida mãe,
Bem, essa é minha primeira carta digital, diferente das que eu costumava fazer quando criança. Você lembra das cartas que eu escrevia? Eu costumava escrever algumas na escola em dias especiais, mas também escrevi algumas para me comunicar melhor com você. Eu entendo que sua infância não tenha sido das melhores e que infelizmente na sua casa não havia comunicação, e entendo que é difícil dar aquilo que não se teve, por isso escolhi escrever cartas para você. Eu escrevia todas aquelas cartas porque eu queria me aproximar de você. Queria te dizer o que eu sentia, o que eu queria, às vezes eu escrevia para pedir desculpas por ter feito ou dito algo que não deveria. Acho que foi ali que nasceu meu lado escritora. Desde pequena sentia vontade de expressar meus sentimentos por meio das palavras, já que nem sempre consigo me expressar verbalmente. Isso tudo aconteceu quando eu tinha uns 7 anos.
Você me disse recentemente que não lembrava de muita coisa da minha infância, enquanto isso, minha memória a longo prazo anda em perfeitas condições. Me lembro como se fosse ontem quando você me acompanhou em um passeio da escola, você foi como uma das cuidadoras das crianças. Nesse dia nós conhecemos o encontro das águas, Rio Negro e Solimões. Senti um orgulho danado de dizer que aquela ali ajudando a cuidar das crianças no passeio era a minha mãe. Me lembro de quando você me levou ao cinema pela primeira vez, quando eu tinha 6 anos. Vimos juntas Garfield, era sua primeira vez ao cinema, desde aquela época você gostava de ir ao shopping, olhar as vitrines, entrar nas lojas e finalizar a visita com “na volta eu vejo”, só que eu odiava fazer isso, então você encontrou a melhor solução que moldou a minha vida: me colocar na sala de cinema por mais de uma hora para poder você andar pelo shopping em paz. Acho que é por isso que eu amo ir ao cinema sozinha.
Sabe que quando eu me perdi no Lollapalooza e meu amigo ficou desesperado porque prometeu a você que cuidaria de mim, isso me fez lembrar da vez que me perdi de você no supermercado. Fiquei desesperada, pedi ajuda do vendedor que anunciou no microfone que havia uma criança perdida. Quando nos encontramos senti uma emoção tão grande, que espero nunca perder esse sentimento toda vez que eu te reencontrar.
Esses dias estava lembrando das nossas férias no interior de Rondônia. Na época morávamos em Manaus, então todo ano íamos visitar nossos parentes, e você me levava para o sítio da vó que era longe, cheio de pernilongo, não tinha nada por perto, fazia calor e nem sequer tinha banheiro direito, tínhamos de fazer nossas necessidades em um buraco ou no pasto com as vacas. Tomava banho de balde do lado de fora da casa, e todo mundo me achava frescurenta “a sobrinha que veio de cidade grande”, não suportava mato. Tentaram me colocar em cima de um cavalo e fiz um escândalo, chorei até que me colocaram no chão e nunca mais tentaram novamente. Às vezes acordava cedo para criar coragem para tirar leite da vaca, mas morria de medo de pegar naquela teta, e eu nem sequer gosto do leite vindo diretamente da fonte, tem gosto estranho, prefiro o industrializado.
Por dez anos era apenas eu, você e meu pai. Eu lembro como você se esforçava para cuidar de mim, fui bem mimada, ganhava Barbie adoidado, mas também naquela época era mais barato, eu só nunca esqueci o dia que eu te pedi uma “Barbie homem” que seria no caso o Ken, mas eu não sabia o nome, e você me deu outra Barbie. Minhas bonecas tiveram que ser lésbicas por muito tempo.
Quando eu era uma jovem adolescente eu não tinha muita noção sobre história das pessoas, sobre o passado delas, sobre momentos de superação, mas ainda bem que mudei, e hoje eu sei que a sua história é o tipo de história que eu espero um dia escrever para se tornar um filme ou um livro, sabe por quê? Porque ela é única e sua! Nascida em 1973, Noemi assim foi dado seu nome em homenagem a sua tia falecida durante o parto. Era a irmã que seu pai mais amava.
Noemi, filha de uma amazonense e um sergipano, passou sua infância em uma fazenda em Jaru, no interior de Rondônia. Lá, alimentava-se apenas do que a terra oferecia ou do que seu pai ou pessoas próximas caçavam ou pescavam. Era a primogênita entre as mulheres de sua família e a terceira mais velha entre seus oito irmãos. Essa última parte ainda estou tentando descobrir, não sei se é quarta.
Você me contou que precisava andar mais de 5km para ir para a escola e mais 5km para voltar. Chegava em baixo de chuva, toda molhava, ou andava sobre o sol torrencial do norte. Inclusive, você me contou que já viu um morto na estrada. Você estava com seus irmãos, viram o morto e desviaram dele para continuar a peregrinação até a escola. Diferente dos meus tios, você era a mais tímida, retraída como você costuma dizer.
Acho bonito o modo como você fala de seu pai e sinto muito por ele não ter te visto crescer, nem me conhecido. Eu me surpreendi muito quando você me disse que ele é e sempre será o grande amor de sua vida. Gosto quando você me conta com entusiasmo que quando seu pai ia à cidade, trazia consigo biscoitos de sal e todos ficavam felizes com aquilo, mas para você sempre tinha algo a mais que ele escondia para não causar ciúmes. Às vezes ele trazia uma boneca de pano ou uma sandalinha nova. Você foi o xodó dele, lhe trazia sempre um agrado simples e genuíno, o que desse para comprar. Ele era o que tornava sua vida um pouco mais bonita no meio do mato, cheio de criança, uma mãe ocupada e pouco dinheiro.
Eu sinto muito minha mãe, pela vida ter lhe tirado o seu bem mais precioso, o amor de sua vida lhe deixou quando você tinha 15 anos. Quem dera tivesse sido por morte morrida, mas considerando quem ele era, pode-se dizer que morreu com valentia, enquanto apaziguava uma briga de bar. Depois disso seu mundo escureceu e a vida, que já era difícil, ficou ainda mais pesada. A vida não foi justa com você depois disso, eu gostaria que não houvesse essa bendita doença chamada depressão, queria que houvesse uma cura instantânea, queria que não tivesse ansiedade, para você não precisar tomar mais nenhum remédio. Você se manteve forte, primeiro para si mesma, e depois para mim. Um dia estávamos falando de sonhos e você disse que eu era o seu sonho, fiquei sem palavras, até envergonhada. Acho fofo saber que meu nome veio de uma música de Pierre Bachelet.
A cada dia que passa sinto que mais me pareço com você, as teimosias, as manias, o jeito de lidar com algumas coisas, sem falar a aparência. Eu sei que nossa relação é turbulenta, dizem que relação de mãe e filha é assim mesmo, não tem jeito, você tem uma personalidade forte e eu também. Você é corajosa e eu também. Você fala o que pensa, e eu bom, eu tento maneirar, mas às vezes não acontece, somos sinceras demais, e sempre extrapolamos nisso.
Eu acho interessante que você adora sua própria companhia e faz de tudo para ficar sem ninguém por perto, e olha só, eu também. Sua risada é a risada mais esquisita que eu já vi na vida, e eu adoro quando você solta ela, gosto de te ver feliz, porque eu sei que a vida foi difícil para você. Eu espero um dia poder compartilhar contigo este texto, e espero que não fique puta por eu ter te exposto assim, porque eu sei que você é uma das pessoas mais discretas que eu conheço, diferente de mim que falta anunciar que vai ao banheiro nas redes sociais. Só que a sua história é o tipo de história que eu tenho vontade de compartilhar, agora então que sua filha resolveu ser escritora, vai ter que aguentar.
Você sempre diz para todo mundo que criou filho para o mundo, mas tenho certeza que não se referia literalmente ao mundo lá fora. No entanto, sinto em te dizer que meus planos coincidem exatamente com isso: partir para o mundo.
Eu sei que quando eu fui a Portugal você quase surtou. Menina doida indo para outro país sozinha, eu perguntei se você confiava em mim e você disse que confiava, mas que não confiava nas outras pessoas. Eu imagino que seja difícil para você, considerando que sou sua única filha e justamente a pessoa mais desastrada e aventureira que há.
Sinto muito que eu tenha desistido de ser promotora de justiça, que eu não queira mais estudar para concurso, que eu não queira morar em Florianópolis, ter um carro ou um apartamento. Mas se tem uma coisa que eu sei que vou fazer por mim e por você, é alcançar minha independência financeira e ser livre, do jeito que você gostaria de ter sido. Todas as minhas decisões são pensadas em você, até mesmo abrir mão da estabilidade para tentar a vida com a escrita, porque afinal, eu tenho a possibilidade de sonhar, e vou sonhar por você.
Bjos.
da Garota.
Domingo será um dia diferente para muita gente, e eu sei que é uma data comercial, etcetera e tal, mas ainda assim é simbólica e importante para muita gente. Infelizmente o Rio Grande do Sul está passando por um dos momentos mais cruéis da sua história, muita gente perdeu sua casa, seus bens materiais que tanto batalharam para ter. Muita gente morreu por causa desse desastre que também é politico.
Lembre-se que qualquer quantia faz toda a diferença, ajude!
Caso tenha dúvida de qual dos milhões de pix doar, tenho algumas indicações:
Minha amiga indicou alguém próxima a ela que se chama Elisandra Brabbatti, ela tem compartilhado em seu Instagram sobre tudo que tem feito tanto para pessoas, quanto para animais, o pix é: lisabramba09@gmail.com
A Luanda Vieira do podcast Corre Delas que acompanho há meses, está arrecadando a quantia de no mínimo R$ 5,00 reais para as crianças de São Leopoldo, para comprar fórmulas infantis
Minhas amigas de infância que moram em Portugal atualmente, são de Canoas, e estão arrecadando vakinha para ajudar sua família que perdeu tudo, então se quiser ajudar alguém em especifico fica o pix a abaixo
Essa foi criada pelo marido (Luis Felipi Alves) da minha amiga, destinada para a família dele em Canoas: 4733216@vakinha.com.br
Esse outro é para a avó das minhas amigas que também perdeu absolutamente tudo: 4754153@vakinha.com.br (para mais informações tem o instagram delas Brenda Nogueira e Jade Nogueira)
É isto. Abraço.
Que carta linda! 💖 Queria poder escrever cheia de carinho assim tbm.